[Dançando Narrativas] Qual é o limite da liberdade artística?

 por Keila Fernandes

Quando criamos coreografias usando personagens ou conceitos já existentes, temos certa liberdade de moldá-los e encaixá-los melhor na nossa linguagem e interpretação.

Vou chamar isso de liberdade artística, ok?

Devo frisar que estou usando o termo liberdade artística para a dança, como o termo licença poética é usado para linguagem (falada, escrita, cantada): no sentido de permitir modificações e “erros” para inovar, desconstruir ou criticar, desde que o contexto permita (lembrando que até mesmo para desconstruir ou subverter algo, é necessário conhecê-lo, e conhecê-lo bem).

No entanto, mesmo cientes da liberdade que a arte nos dá, é necessário termos responsabilidade com nossas escolhas e como isso aparecerá em nossa dança.

Eu costumo dizer que o limite da liberdade artística ao desenvolver um personagem é o bom senso.

Isso pode parecer genérico, e é. Pois cada pessoa vai ter uma interpretação e estabelecer limites aos quais não estará disposta a ultrapassar.

Por isso, como citei no texto anterior, é necessário pesquisar bastante antes de criar uma coreografia baseada em uma figura já existente, seja ela mitológica, histórica ou até mesmo da cultura pop.

Existem características chaves, pelas quais tais figuras são facilmente reconhecidas, características que formam sua personalidade. E estas devem ser mantidas.

E há o espaço para criar, se expressar, subverter e inovar.

Você pode dar uma roupagem moderna a Anúbis, por exemplo. Usando figurinos e movimentos urbanos. Mas é importante que ainda assim, ele seja reconhecível. Ele é um deus ligado à morte, à mumificação e ao julgamento dos mortos. E isso deve ser mantido, seja nos detalhes do figurino, nos movimentos e na expressão. Mas você não precisa usar uma cabeça de chacal, ou trajes “egípcios”. Não precisa ser caricato ou estereotipado.

 

O deus Anúbis, na série Deuses Americanos. Uma interpretação atual que manteve as principais características dele: a ligação do deus com a morte, pois ele trabalha em uma funerária, e ainda é seu papel de pesar o coração dos mortos e determinar seu destino.

 É possível reinterpretar mitos e criaturas, fazendo-os conversar com o presente, desde que eles não sejam descaracterizados.

E como fazer isso sem deixar caricato?

Eu vou dar algumas dicas, baseadas em experiências que tive na criação e desenvolvimento de personagens para as coreografias do grupo do qual faço parte, o Asgard Tribal Co., dirigido pela minha professora Aerith Asgard, e codirigido pela Rossana Mirabal e por mim. E também vendo apresentações de outros grupos e bailarinas e bailarinos que desenvolveram um trabalho primoroso.

Nós gostamos muito de trabalhar com personagens, e para encaixá-los nas nossas propostas de coreografia, pesquisamos a fundo, buscando as principais características que serviram ao nosso propósito sem descaracterizá-los.

Vamos lá!

Depois de escolher a personagem e fazer uma boa pesquisa sobre ele (eu vou bater MUITO nessa tecla da pesquisa):

  • primeira coisa a se fazer é se perguntar: por que eu quero fazer essa figura? O que eu quero dançar sobre ela?
  • escolha uma ou duas características principais com as quais você gostaria de trabalhar na dança. Pode até ser mais, mas quanto mais aspectos você tentar inserir, mais chance tem de ficar bagunçado.
  • busque referências à essa personagem em diversos lugares. Além dos livros de mitologia, você pode pesquisar outras fontes históricas e arqueológicas, como imagens, canções e poesias dedicadas à essa figura. Músicas que falam sobre ela, filmes, produções literárias, quadrinhos e o que mais você encontrar.
  • use posturas, movimentos e expressões que tenham a ver com a personalidade da figura a ser trabalhada.
  • escolha símbolos, cores, acessórios coerentes com as características que você quer evidenciar. Mescle isso com os elementos dos quais você gosta e se identifica.
  • cuidado na escolha da música. Independente do estilo, ela precisa conversar com a personagem que você irá interpretar.
  • Não subestime seu público. Não seja literal, isso deixará sua apresentação caricata. Use sua imaginação e siga seus instintos.

 

Lembrando que essas são apenas dicas e sugestões. De forma alguma quero criar um manual de regras.

Abaixo coloquei algumas coreografias nas quais as interpretações de personagens  que considero muito bem executadas:

A maravilhosa Ebony interpretando a queridíssima princesa Shuri, de Wakanda. Figurino no ponto, a música e os movimentos combinando ancestralidade e modernidade, trouxeram a personalidade carismática de Shuri e representaram Wakanda.

 

 

Irina Akulenko, com sua coreografia “The Call of The Amazon Warrior”. O figurino simples foi muito bem composto, pois os tecidos, o corte e as cores evocam a ideia da guerreira amazona. Além disso a expressão corporal e facial, os movimentos e as posturas trazem todo o porte e a força da guerreira representada.

Edenia e sua interpretação matadora de Pennywise, do clássico do terror, IT. O figurino e a maquiagem muito bem construídos, lembrando o personagem, mas sem se tornar uma caricatura. A mudança na atmosfera da música e dos movimentos trazem a quebra de expectativa comum às obras de horror. A bailarina também referenciou movimentos do personagem no filme sem abusar desse elemento. 

 

E para finalizar, o grupo Shaman Tribal Co. com sua icônica coreografia “Carcará”. A harmonia entre movimentos e música é incrível. Sabemos que se trata de um pássaro, e um pássaro brasileiro. O grupo usa movimentos que lembram o bater de asa, o andar e o movimento da cabeça do carcará aliados aos movimentos do Estilo Tribal Brasileiro. Tudo isso junto ao figurino e à maquiagem resultou em uma apresentação impactante e celebrada. 

Vimos então personagens mitológicos, da cultura pop e até mesmo animais, cujas características transbordam na dança, na expressão e na escolha das músicas.

É nítido o trabalho de pesquisa e o cuidado com as referências usadas pelas bailarinas.

A dança nos dá autonomia para fazermos o que quisermos. Mas isso não significa que temos que fazer de qualquer jeito.


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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 
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