[Venenum Saltationes] De Onde Vem A Inspiração?

 por Hölle Carogne

Apollo and the Muses on Parnassus - Samuel Woodforde  

93!

“Quem sabe de onde vem a inspiração? Talvez surja do desespero. Talvez venha das casualidades do Universo, da bondade das musas.”
Amy Tan

Inspiração, substantivo feminino.

Do latim “inspiratio” e “inspirare” (soprar em).

- Ato ou efeito de inspirar (-se).

- Entrada de ar nos pulmões.

- Conselho, sugestão, influência.

- Criatividade, entusiasmo criador.

- Pessoa ou coisa que inspira e estimula a capacidade criativa.

- Ideia súbita e espontânea, geralmente brilhante e/ou oportuna; iluminação, lampejo.

 

Hesiode et la Muse - Gustave Moreau 

De acordo com os gregos, existiam divindades femininas relacionadas às artes e às ciências: as Musas (os romanos chamavam-nas Camenae). Filhas de Zeus e Mnemósine, as musas tinham funções no universo das artes e dos símbolos. Eram invocadas pelos poetas para trazer inspirações. Eram nove: Erato (poesia lírica), Euterpe (música), Calíope (poesia épica), Clio (história), Melpômene (tragédia), Polimnia (canto solene), Terpsícore (dança), Tália (comédia) e Urânia (astronomia). O templo das musas era o Museion, termo que deu origem à palavra museu nas diversas línguas indo-europeias como local de cultivo e preservação das artes e ciências.

Em teologia, a Inspiração estaria atrelada apenas aos humanos intimamente ligados à Deus, que receberiam supervisão e aprovação do Espírito Santo, fazendo com que a obra criada fosse, de alguma forma, uma revelação divina. Seria o caso das escrituras sagradas, por exemplo.

 

O evangelista Mateus inspirado por um anjo - Rembrandt 

Desde os primórdios da humanidade, o homem sentiu a necessidade de explicar as coisas. Como se nomeando, dividindo ou criando por meio de observação, trouxesse luz às questões coletivas obscuras, impossíveis de responder por meios científicos. Dessa forma, a Inspiração seria o sopro de Deus no coração do homem de fé ou um presente dos deuses, através de suas filhas: as Musas.

Mas, saiamos um pouco da esfera do misticismo e tentemos entender melhor este conceito, tirando-o das mãos de deus/deuses. Tentemos refletir sobre suas possíveis origens (usando diversas perspectivas) e descobrir o que alguns estudiosos têm falado sobre isso.

Nosso intuito não é achar respostas (uma vez que não existem) e sim, fazer mais e mais perguntas.

Lembrando que a ideia é sair apenas um pouco da esfera do misticismo, visto que este é um assunto impossível, sem verdades absolutas, cheio de névoa e superstição. Além disso, estamos na Venenum. Se não houvesse aquela pitada deliciosa do oculto e dos mistérios, não estaríamos aqui, não é mesmo?

Para ajudar no meu raciocínio e pesquisa, criei alguns itens, que seguiremos como uma luz no fim do túnel.

São eles: tempo, manifestação, imobilidade do eixo, divisões temporais, inconsciente pessoal e coletivo, luz astral, entre outros.

Comecemos então a tarefa impossível:


Estaria a Inspiração atrelada ao Tempo e às divisões temporais feitas pelo homem?

Para Baudelaire, o tempo é “o inimigo vigilante e funesto, o obscuro inimigo que nos corrói o coração”. (Spleen e Ideal).

 

O Tempo e a Fortuna, retratados por Giovanni Battista Bonacina 

Em todas as culturas elevadas encontra-se uma simbologia do tempo. O tempo era um conceito tão importante e tão fundamental que era/estava personificado em entidades. No Egito: o deus ajoelhado Hah ou Heh. Na Pérsia antiga: Zervan. Na índia: Kali, a destruidora. Na Grécia: Chronus (ou Kronos) e, também, Kairos, o deus do momento oportuno. Na astrologia helenística, os planetas e outros seres divino-demoníacos eram adorados como divindades do tempo.

O tempo é frequentemente simbolizado pela Roda, com seu movimento giratório. Também associado à Rosácea, pelos doze signos do zodíaco (que descrevem o ciclo da vida) e, geralmente, por todas as figuras circulares. O relógio corre atrás dele mesmo, assim como o Ouroboros que morde a própria cauda, simbolizando o ciclo eterno da vida no cosmos.

 

Ouroboros - Autoria desconhecida 

O centro do círculo é considerado como o aspecto imóvel do ser, o eixo que torna possível o movimento dos seres, embora oponha-se à este como a eternidade opõe-se ao tempo. Todo movimento toma forma circular, do momento em que se inscreve em uma curva evolutiva entre um começo e um fim, e cai sob a possibilidade de uma medida, que não é outra senão a do tempo.

O que explica a definição agostiniana: “imagem móvel da imóvel eternidade”.

E nos remete aos pensamentos de Platão: “o tempo (chrónos) é a imagem móvel da eternidade (aión), movida segundo o número”.

Partindo do dualismo entre mundo inteligível e mundo sensível, Platão concebe o tempo como uma aparência mutável e perecível de uma essência imutável e imperecível – eternidade. Enquanto que o tempo é a esfera tangível móbil, a eternidade é a esfera intangível imóbil. Sendo uma ordem mensurável em movimento, o tempo está em permanente alteridade. O seu domínio é caracterizado pelo devir contínuo dos fenômenos em ininterrupta mudança.

Posto que o tempo (chrónos) é uma imagem, ele não passa de uma imitação (mímesis) da eternidade (aión). Ou seja, o tempo é uma cópia imperfeita de um modelo perfeito – eternidade.

Vemos aqui a ideia do conceito ocultista da manifestação, onde o “pequeno mundo” humano e o “grande mundo” do universo se encontram em intercâmbio (micro-macrocosmo). O visível seria a manifestação do invisível: “Assim na terra como no céu” (como pregam os cristãos) ou “O que está em cima é como o que está embaixo” (segundo a máxima hermética).

 

A Persistência da Memória – Salvador Dalí 

Nosso desejo de medir o tempo provavelmente começou quando percebemos que o Sol se movia pelo céu e desaparecia abaixo do horizonte, trazendo com ele a escuridão. Se o homem pudesse medir o tempo, teria algum alívio do medo de que o Sol jamais nascesse de novo. Fazendo isso, ele podia ter mais controle sobre sua vida e planejá-la de forma mais cuidadosa.

A Lua foi o primeiro relógio e nossos ancestrais notaram seus movimentos e reconheceram a chegada do inverno, da primavera, e outras posições importantes para a caça e, mais tarde, para o plantio.

O tempo, como o percebemos, está sempre dividido em períodos, desde as horas, dias, semanas, meses, fases da lua, ano, década, século, etc. O homem necessitou organizar o tempo para observar a natureza, a evolução da Terra e o próprio comportamento humano. Desta organização surgem divisões conhecidas como Eras Geológicas (divisões na linha do tempo que narram os grandes eventos geológicos da história do planeta), Períodos Históricos (método cronológico usado para contar e separar o tempo histórico da humanidade), Eras Astrológicas (baseadas no fenômeno astronômico chamado precessão dos equinócios, que seria um período de aproximadamente 2.160 anos em cada signo do zodíaco. Ao completar a roda zodiacal ter-se-ia o Grande Ano, a cada 25.920 anos, aproximadamente), Aeon (para os thelemitas, seriam períodos de tempo com suas próprias formas de expressão mágica e religiosa; e para os gnósticos, cada uma das entidades emanadas de Deus, que frequentemente estariam envolvidas na criação da humanidade, conferindo espírito aos seres humanos), Zeitgeist (o “espírito da época” seria o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas de um determinado período de tempo). Até mesmo a ira de Deus tem uma medida, a chamada “medida da iniquidade”, que seria um período de tempo ou quantidade de pecados que um povo (ou um ser humano específico) poderia cometer para ter direito ao perdão divino. “...porque a medida da injustiça dos amorreus não está ainda cheia.” (Gn 15.16).

Muitas destas divisões temporais influenciam o modo de pensamento e as tendências mentais da humanidade. Creio que muitos dos nossos interesses se relacionam com o meio em que estamos inseridos (social, cultural, econômico, histórico, etc). Nossa realidade acontece em uma determinada época, onde a coletividade vive e se expressa de uma maneira condizente com ela.

Os homens que nascem num mundo modificado por uma ideia carregam em si o traço, a impressão dessa ideia e é assim que o verbo se faz carne. 
(Eliphas Levi)

Além disso, creio que só criamos, pois também somos espectadores. A arte que consumimos transforma-se em insumo para nossas próprias criações. Eu só escrevo, porque antes de escritora, sou leitora.

De acordo com Eliphas Levi: "A alma aspira e respira exatamente como o corpo. Aspira o que crê ser conveniente à sua felicidade e respira ideias que resultam das suas sensações íntimas."

 

Le Théâtre Rêvé - Anne Bachelier 


Falemos agora sobre este lugar desacreditado por muitos e defendido por tantos outros... A morada das ideias, dos sonhos e da inspiração.

Existem vários nomes para esse espaço entre os mundos. Jung chamou-o tanto de inconsciente coletivo e psique objetiva quanto de inconsciente psicóide, referindo-se a uma camada mais indescritível do primeiro. Ele considerava este último um lugar em que os universos biológico e psicológico compartilhavam as mesmas nascentes, em que a biologia e a psicologia talvez se pudessem fundir, influenciando-se mutuamente.

O inconsciente (junguiano) seria a raiz do consciente e estaria dividido entre um inconsciente pessoal e um inconsciente coletivo, no qual as experiências primitivas da humanidade encontraram a sua sedimentação. Os elementos estruturais do inconsciente seriam os arquétipos (formas ideais; estruturas psíquicas universais, inatas ou herdadas, como uma espécie de consciência coletiva). As imagens do inconsciente (através de símbolos*) se manifestariam nos sonhos, nos mitos, nas fábulas (ou contos de fadas) e, também, na arte.

*Símbolo: O símbolo é um sinal visível de uma realidade invisível. Sintetiza, numa expressão sensível, todas as influências do inconsciente e da consciência, bem como das forças instintivas e espirituais. É próprio do símbolo o permanecer indefinidamente sugestivo: nele, cada um vê aquilo que sua potência visual lhe permite perceber. Faltando intuição, nada de profundo é percebido. 

Isso explicaria porque estas linguagens são compreensíveis à grande maioria dos seres humanos. Explicaria, também, o fato da arte emocionar àqueles que sabem decifrar seus símbolos.

 

Arte de Freydoon Rousseli 

Se pensarmos que todas as coisas possuem alma, os mitos/sonhos/fábulas/arte podem ser vistos como elementos vivos e neles nada aconteceria em função de leis impessoais. Por isso, o ser humano vivencia essas realidades e se familiariza com elas. Sejam quais forem os sistemas de interpretação, essas linguagens ajudam a perceber uma dimensão da realidade humana e trazem à tona a função simbolizadora da imaginação.

A imaginação (a qual os cabalistas chamavam de o diáfano ou o translúcido) é algo assim como os olhos da alma, sendo nela onde se desenham e se conservam as formas; é por ela também que vemos os reflexos do mundo invisível e deste modo, enfim, é o espelho das visões e o aparelho da vida mágica.

Na Irlanda há o conceito de “Sid” (outro mundo), lugar onde haveria uma ruptura simbólica do tempo humano. Seria uma aparição do eu, de um eu desconhecido, que surge do inconsciente, que inspira um medo quase pânico e que as pessoas reprimem nas trevas. A alma do outro mundo seria a realidade renegada, temida, rejeitada.

 

Der Astralmensch (The Astral Man) - Sascha Schneider 

Eliphas Levi e Papus, entre outros, discorreram sobre a “luz astral” (ou a alma do mundo), que seria algo como um arquivo vivo ou a memória do universo.

A realização da palavra é o verbo propriamente dito. Um pensamento se realiza ao se converter em palavra; esta se realiza pelos signos, sons e pelas figuras dos signos: este é o primeiro grau da realização. Depois se imprime na luz astral por meio dos signos da escritura ou da palavra; influencia outros espíritos ao se refletir neles; se refrata atravessando o diáfano dos outros homens e adquire formas e proporções novas, traduzindo-se posteriormente em atos que podem modificar a sociedade e o mundo, que é o último grau de realização.
(Levi)

Para a psicanalista junguiana Clarissa Pinkola Estés, desde a memória humana mais remota, esse lugar, quer o chamemos de Nod, de lar dos Seres de Névoa, de fissura entre os mundos, de inconsciente coletivo, de luz astral, entre outros, é o lugar onde ocorrem aparições, milagres, imaginação, inspiração e curas de todas as naturezas.

Eu creio num plano astral onde nosso corpo sutil pode acessar informações e trazê-las para a consciência. A meu ver, seria uma boa forma de pensar o fato de diversas religiões originárias possuírem sistemas semelhantes de crenças, sem nunca terem tido contato com outras culturas. Explicaria, também, o fato de artistas que não se conhecem criarem obras muito parecidas, uma vez que fizeram uso de símbolos com potências ancestrais, que são inerentes a toda a humanidade.

E você, no que acredita?

Uma coisa interessante sobre a inspiração é que de nada adianta sermos seres inspirados, se esta inspiração não for canalizada e materializada.

Como nos instruiu Marina Colasanti, na fábula “Uma Ideia Toda Azul”, ideia não é para ficar adormecida, mas para ser realizada, sob pena de se perder.

E o tio Levi, quando profetizou: Toda intenção que não se manifesta através de atos é uma intenção vã e a palavra que a expressa é uma palavra ociosa. A vida é demonstrada pela ação e é também a ação que comprova e demonstra a vontade. É por isto que se disse nos livros simbólicos e sagrados que os homens serão julgados não por seus pensamentos e por suas ideias, mas sim por suas obras. Para ser é necessário fazer.

...

No dia 17/08, Yuri Seima, Honora Haeresis e eu nos encontramos online para debater sobre todas estas questões. Yuri trouxe um pouco do seu conhecimento com ocultismo e Honora contribuiu com diversos conceitos interessantes abordados na Gestalt terapia. Você pode conferir esta live no IGTV do meu perfil do Instagram.

Para quem perguntou sobre nossas inspirações pessoais, segue:

- Yuri: H.P Lovecraft, Clive Barker, Todd McFarlane, HR Giger, Neil Gaiman, Olivier de Sagazan, etc. No dia a dia me inspiro muito seguindo vários artistas nas redes sociais que trabalham com os mesmos temas que eu.

- Honora: Na literatura e poesia: Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos, Clarice Lispector, Nietzsche, Schopenhauer, Cioran, Florbela Espanca, Goethe, Lord Byron, Dostoiévski, Ivanes Freitas, Jarid Arraes, entre muitos outros. Nas artes plásticas e visuais: Modigliani, Portinari, Anita Mafaltti, Vik Muniz, Olivier de Sagazan, entre muitos outros. Na dança e performance: Maria Pages, Kazuo Ohno, Marina Abramović e Ulay, Martha Graham, Pina Bausch. As referências do Tribal Fusion são inúmeras, dentre elas: Zoe Jakes, Kami Liddle, Rachel Brice, Ethel , Saba Khandroma, Hölle Carogne, Gilmara Cruz, Joline Andrade, Alinne Madelon, Kilma Farias... Na dança do ventre com certeza a Saida.

- Hölle: Na escrita: Florbela Espanca, Rimbaud, Baudelaire, Platão, Nietzsche, Anaïs Nin, Marion Zimmer Bradley, Hilda Hilst, Marina Colasanti, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos, Álvares de Azevedo, Manuel de Barros, entre outros. Na dança: Pina Bausch, Isadora Duncan, Martha Graham, Bob Fosse, Tatsumi Hijikata, Kazuo Ohno, Ivana Caffaratti, Gaia Scuderi, Idhun, Violet Scrap, Grace Constantine, Illan Riviere, Piny Orchidaceae, Lelyana Stanishevskaya, entre outros. Energeticamente/ideologicamente (na dança): Saba Khandroma e Aepril Schaile. Outros artistas: Austin Osman Spare, Wim Mertens, Diamanda Galás, Tao Sigulda, Salvador Dalí, Anne Bachelier, Saturno Butto, Jam Saudeck, Frida Khalo, Natalia Drepina, Denis Forkas, Lupe Vasconcelos, Yuri Seima, Agnieszka Osipa, Treha Sektori, Rosa Crvx, Nicole Mahlimae, Leo Carreño, Daria Endresen, Anna-Varney Cantodea, Olivier de Sagazan, entre outros.

Para finalizar, gostaria de dizer o quanto é importante e fundamental falarmos sobre quem nos inspira. Dar crédito a estas pessoas por plantarem algo dentro de nós. Não deixe suas inspirações na sombra. Fale sobre elas, agradeça-as!

E então... Quem te inspira?

Obrigada a todos que leram até aqui!

Até o próximo assunto nebuloso!

93,93/93

 

Bibliografia:

- Dicionário de Símbolos, O Alfabeto Da Linguagem Interior – Maria Cecília Amaral de Rosa

- Dicionário de Simbologia – Manfred Lurker

- Dicionário de Símbolos – Jean Chevalier e Alain Gheerbrant

- Os Símbolos Místicos – Brenda Mallon

- O Tempo em Platão e Aristóteles – Rémi Brague

- Mulheres Que Correm Com Os Lobos – Clarissa Pinkola Estés

- Dogma e Ritual de Alta Magia – Eliphas Levi

- A Bíblia Sagrada – Deus (rsrsrs)

- Wikipedia

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Venenum Saltationes

Hölle Carogne (Porto Alegre-RS) é  a alma por detrás do humano, do rígido. É curiosa, entusiasta e selvagem. Uma admiradora da arte, da dança, da literatura e da música.O "esquisito" a seduz. Seus poemas e seus movimentos estão impregnados de ideologias, de crenças. Compassos pouco convencionais, cheios de misticismo, de oposição, de agressividade.Ocultismo, caos e luxúria sendo mesclados às suas criações e retratados de forma crua, orgânica, uterina.

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