por Hölle Carogne
“Quando eu era criança, falava como criança, sentia como
criança, pensava como criança; quando cheguei a ser adulta, desisti das coisas
próprias de criança. (?) Porque, agora, vemos como em espelho, obscuramente;
então, veremos face a face. Agora, conheço em parte; então, conhecerei como
também sou conhecida...”
Adaptação de Coríntios 13
Símbolo: A boneca; o chocalho da criança.
Significado do título: Mater Tenebrarum – In Puritia Vertigo
(Nossa Senhora das Trevas – Em Vertigens da Infância).
Abordagem da coreografia: Síndrome de Peter Pan.
Pintura de Yuri Seima |
Mater Tenebrarum é uma
representação arquetípica. A vi uma vez, presa no espelho. Era uma mulher muito
velha e albina. Cabelos brancos, pele branca, olhos brancos, cílios brancos,
sobrancelhas e vestes brancas. Ela tinha feridas de osso nos braços e cutículas
podres. As feridas não sangravam mais, como se ela não tivesse sangue... Através
dos buracos existentes na carne, estavam os ossos, como se a emergir do próprio
corpo...
Alguém com muito conhecimento, mas ao mesmo tempo, muita
confusão e falta de controle emocional. Ela representa em mim a insânia, a
loucura, o vazio do inconsciente.
Alguém que não soube usar todo o seu conhecimento e
enlouqueceu. Ela trabalha em mim todas essas questões mais psicológicas ligadas
à transtornos e distúrbios.
Mater Tenebrarum foi como a chamei, pois uma vez estava lendo
o livro “Paraísos Artificiais” do Charles Baudelaire e tinha uma parte onde ele
falava de 3 musas, sendo uma delas a Mater Tenebrarum... A descrição dele sobre
a Mater Tenebrarum lembrou muito as características do meu arquétipo... Então decidi
que este seria o seu nome.
Aqui o trecho do livro: "Mas a terceira irmã, que é
também a mais jovem!... Psiu! Falemos dela bem baixinho. Seu domínio não é
grande: se o fosse, nenhum ser sobreviveria; mas sobre seu reino o poder que
exerce é absoluto... Apesar do triplo véu de crepe que envolve sua cabeça, por
mais erguida que a traga, pode-se ver debaixo a luz selvagem que escapa de seus
olhos, luz de desespero sempre flamejante. Nas manhãs e nas noites, ao meio-dia
como à meia-noite, à hora do fluxo como à hora do refluxo. Ela desafia Deus. É
também a mãe das demências e a conselheira dos suicídios... A Madona caminha
com um passo irregular, rápido ou lento, mas sempre com uma graça trágica.
Nossa Senhora dos Suspiros desliza timidamente e com precaução. Mas a mais
jovem das irmãs move-se com movimentos imprevistos: salta; tem os pulos do
tigre. Não carrega consigo uma chave, pois, embora visite raramente os homens,
quando lhe é permitido aproximar-se de uma porta, toma-a de assalto e a
arromba. E o seu nome é Mater Tenebrarum. Nossa Senhora das Trevas."
Anos depois, certamente influenciada pelas palavras cortantes
do Baudelaire, eu escrevi “Das Três Madonas”, onde falo um
pouco sobre 3 das minhas principais sombras (Hölle Carogne, a bruxa tecelã;
Babalon, a prostituta sagrada e Mater Tenebrarum, a louca).
Sobre a Mater,
escrevi:
“A
terceira irmã, com cabelos negros e vestes em frangalhos, é a mais misteriosa.
Traz a cabeça sempre baixa, em direção ao chão. A estatura e a aparência do
corpo denunciam a fragilidade e a pouca idade da menina. – Vejam só: É apenas
uma criança! No lugar dos olhos, uma luz flamejante e desesperadora revela ares
de solidão, de esquecimento, de demência encarnada. Você não ousaria fitá-la
nos olhos. Ela jamais permitiria. Se ela resolvesse erguer um pouco a cabeça em
sua direção, você não suportaria tamanha tortura. Suas feições são inconstantes
e intensas, como a própria loucura personificada. Por vezes, chora ou pronuncia
palavras incompreensíveis; por outras, grita e geme. Murmura, cheia de agonia.
Seus passos são irregulares: às vezes anda rápido, às vezes engatinha. Em
alguns momentos pula e até mesmo anda em círculos. Vive a contorcer-se de dor.
Não enxerga nada através do vazio que se apodera dos seus olhos. Guia-se apenas
pela audição ou pelo faro. Está sempre perdida, à procura das irmãs. Vive à
espreita. É ela quem assume as glândulas e as garras; e apenas rouba, suga,
escraviza. Ela não tem nada para emprestar. Não possui dom algum. Quando ela
reina, transforma tudo em ruínas, deixa carcaças pelo chão e um cheiro ácido de
sangue pelo ar. Ela é o vazio; a insânia.”
Sobre reflexo
“No espelho
da natureza
todos tem
o espanto
do que eles
próprios são
Por isso é que
os fantasmas
- por mais que
eles assombrem
crianças e adultos
Tem sempre
os olhos claros...”
(Cris de Souza)
A coreografia “In Pueritia Vertigo” foi a segunda a ser
idealizada, mas a primeira a ser concretizada. Ela fala sobre o fator
psicológico da Síndrome de Peter Pan... A dificuldade de aceitar a vida
adulta... A ligação imensa com a infância!
“Quando eu era criança, eu não gostava de outras crianças. Comecei
a frequentar a escola, e tinha crises quando dava o barulho da sineta do
recreio. Eu via pela janela todas aquelas crianças saindo muito rápido e
correndo. Me dava um pavor tão grande, que eu começava a chorar.
Quando eu era criança, eu colecionava bichos mortos. Insetos,
na maioria das vezes. Uma vez achei um fóssil de lagartixa e guardei em um pote
de filme fotográfico. Eu olhava para ela todos os dias e eu vi ela se esfarelar
e sumir por completo.
Quando eu era criança, eu era gaga. Mas isso melhorou com o tempo, e quando estava na terceira série ganhei 3º lugar em um concurso de oratória. Meu assunto: Borboletas Caligo (Aquelas semelhantes às corujas).
Quando eu era criança, meu sonho era ter um dicionário.
Quando eu era criança, eu tinha crises de choro, do nada. Eu não lembro das crises. Mas conta minha mãe que ao perguntar o motivo, eu dizia que não queria crescer.
Não havia nada de bom na minha infância. Eu fui uma criança solitária e cheia de problemas. Mas eu realmente não queria ter crescido. Eu tenho saudades de algo desta época, e eu não sei o que é.
Quando cresci, sempre tive a sensação de não estar preparada,
de não saber tomar certas decisões... Eu ainda me sinto infantil em muitas
coisas. E isso me prejudica. Às vezes eu finjo ser criança, ou fico imaginando...
Durante a coreografia, eu tentei acessar várias das minhas memórias
corporais de criança, como a contração do intestino e a contração dos dedos dos
pés... A minha fixação pelas minhas mãos... E pela minha boca...
A boneca entra na coreografia como o símbolo da infância, o
chocalho da criança...
No final, eu canto uma parte da música que significa “uma
última vez”, junto o espírito da boneca (ou esse apego à infância) e deixo
ir... No vídeo não dá para ver muito bem, mas eu jogo para o ar, fazendo movimentos
de pássaro com as mãos...
Escolhi a música "Vermisster Traum" do Goethes Erben antes de
saber o que ela significava, até que um dia, a banda postou um vídeo desta
música, onde o vocalista segurava uma boneca. Fui ler a tradução da letra e: “Ela pega a boneca - chocalho da criança... Um grito está
faltando - olhos cegos!”
Neste trabalho não existe exatamente um enredo, uma história.
Existe todo o conceito, que infelizmente poucas pessoas irão compreender, e que
é difícil de “desenhar”. Trata-se de algo muito pessoal. De uma vivência. De um
sentimento e de uma dor que somente eu conheço.