Zaar, a Dança Ritual

por Hölle Carogne


 O Estilo:

Zaar é uma dança de transe do Alto Egito, também praticada no Sudão e Somália. O ritmo (Ayoub) é pesado, marcado por apenas duas notas. Os movimentos  tradicionais são jogadas de cabeça e gingadas. Movimentos pélvicos e de braços também podem ser utilizados. O objetivo é o transe coletivo levado à  exaustão.

O Zaar, mais do que um estilo de dança, é uma expressão religiosa, um ritual. O ritmo -Ayoub - usado para promover o transe, também pode ser conferido em rituais afro-religiosos, como o candomblé, e serve para afastar maus espíritos.




A Cerimônia:

Apesar do Zaar ser tecnicamente proibido pelo Islã, ele continua a ser parte essencial dessas culturas.

É melhor descrito como um culto de cura que usa tambores e dança em suas cerimônias. Também funciona como um compartilhamento de conhecimento e solidariedade social entre as mulheres dessas culturas tão patriarcais. A maioria dos líderes do Zaar são mulheres, e a maioria dos participantes também. Muitos escritores notaram que enquanto a maioria dos espíritos possuidores é masculina, as possuídas são geralmente mulheres. Isso não quer dizer que os homens não contribuam para as cerimônias de zaar: eles podem ajudar com os tambores, na matança dos animais, ou podem ser requisitados para fazer oferendas ao espírito possuidor.

As cerimônias de Zaar se estabeleceram no Sudão nos anos 1820. Foram ilegalizadas pela lei de Shari'a em 1983, mas, ao invés de diminuir, parecem ter aumentado. Elas dão às mulheres uma forma única de consolo em sociedades patriarcais rígidas. O próprio Islã sempre acreditou na existência de “espíritos”, que eles chamam de “Jinn”. Além disso, o Zaar foi oficialmente banido do Sudão em 1992, mas os tambores ainda soam - possivelmente, devido ao suporte de esposas de homens influentes.



A possessão no zaar é normalmente herdada. É também “contagiosa” e pode vir a qualquer hora. O zaar é basicamente uma dança de espíritos ou dança religiosa - resquício das antigas deidades africanas, uma variante do que aqui no ocidente chamamos de “vudu”. As antigas deidades africanas são chefiadas por duas figuras: Azuzar (o masculino, associado a Osíris) e Ausitu (o feminino, associada à Ísis). É descrita como uma dança ritual que é mais observada por mulheres, especialmente mais velhas. Isso corresponde à prática das religiões africanas mais antigas, onde as mulheres mais velhas eram as sacerdotisas. Mulheres mais jovens, especialmente não-casadas, não são tidas como merecedoras da visita do espírito de zaar, que escolhe a residência na pessoa que quiser.

No Egito, é mais dançado pelas pessoas que vivem nas áreas de vilas do sul, que foram menos expostas aos muitos invasores que vieram, através dos séculos, da Grécia, Roma e Oriente Médio, culminando nos árabes muçulmanos. A maioria dos praticantes é encontrada no Sudão, Etiópia e Somália - lugares que mantêm tradições já desaparecidas no Egito. O zaar, hoje, é praticado mais para relaxamento e cura espiritual por pessoas estressadas ou com problemas. O animal de sacrifício pode ou não fazer parte dessa cerimônia moderna.



“Cada mulher movida pela pulsação do tambor... O movimento da mulher crescendo em intensidade e velocidade, seus olhos meio fechados, ela parecia não notar nada ao seu redor, abandonando completamente a si mesma para a dança. Seus movimentos fluíam livremente de dentro para fora, ganhando força e velocidade à medida que ela completava o círculo ao redor do altar imponente onde os ajudantes estavam... até que, finalmente, jogava seus braços para cima e estava prestes a cair, mas a Kodia a guiou para o chão...” (descrição de uma cerimônia de zaar egípcia).

“Fumar, dançar ousadamente, se soltar, arrotar e soluçar, beber sangue e álcool, vestir roupas masculinas, ameaçar homens publicamente com espadas, falando alto sem pensar em etiqueta... esses são comportamentos comuns e esperados das mulheres que praticam o Zaar.”



Como um culto, os grupos de zaar têm um líder e os membros devem ir a seções regularmente. Pode haver rituais públicos ou privados; em um ritual privado apenas os familiares próximos podem estar envolvidos.

A líder pode ser chamada de “Kodia” (Egito), Shaykha (Sudão) ou “Umiya” (Sudão), dependendo da região. A própria líder é possuída. Ela tem que entrar em acordo com seu “Jinn” ou espírito para estar pronta a ajudar os outros. A liderança é normalmente passada de mãe para filha ou por membros femininos da família. Homens não podem herdar a possessão, mas podem reivindicar terem sido “chamados”.

O zaar egípcio é normalmente feito num quarto amplo com um altar. Em qualquer país, é importante que o espaço de uso doméstico seja separado do espaço sagrado, ou do lugar de sacrifício. O altar é coberto com um pano branco e empilhado de castanhas e frutas secas. A Kodia e seus músicos ocupam um lado do quarto, e os participantes o resto dele. Os convidados devem contribuir com uma quantia de dinheiro de acordo com sua posição. Ter uma cerimônia de zaar pode ser muito lucrativo, mas entende-se que o líder é alguém a quem as mulheres podem recorrer em tempos de necessidade - assim ele serve também como uma sociedade solidária, na qual os membros tanto dão como recebem ajuda.

A mulher para quem o zaar é preparado pode vestir-se de branco, geralmente uma galabiya de homem ou saia. Ela usa henna nas mãos e corpo, e kohl nos olhos. Ela também pode ser fortemente perfumada, como os convidados. Perfumes (especialmente olíbano) são as oferendas mais comuns aos espíritos do zaar. No começo das cerimônias, passa-se um turíbulo entre os convidados, para purificarem seus corpos.

Espera-se que a Kodia seja uma cantora treinada, que conheça as músicas e ritmos de cada espírito. Ao cantar a música de um espírito e observar as reações, ela pode diagnosticar que tipo de espírito baixou e como “tratá-lo”. Os instrumentos musicais usados são o tar, um tipo de pandeiro, e a tabla. O número de ajudantes vai de 3 a 6; eles dão o apoio rítmico. Durante as cerimônias, os vários espíritos são invocados por sua própria batida de tambor característica (ou linha). A Kodia também tem um acervo de roupas, que passa ao possuído a fim de acomodá-lo.



Se o sacrifício animal é usado, deve ser com uma galinha, pombo, ovelha ou, até mesmo, um camelo, se a mulher for rica. Em todo caso, prover algum tipo de comida ou refeição é parte essencial da cerimônia. Dizem que os espíritos etíopes gostam de café. Espíritos não-mulçumanos podem exigir bebidas alcoólicas, enquanto espíritos femininos podem preferir bebidas doces, como refrigerante. No Sudão, nas áreas onde sacrifício animal é considerado necessário, o restabelecimento do paciente não é considerado completo até que a refeição do sacrifício é consumida na noite final. Ela geralmente consiste em carne, pão, arroz e caldos.

O Zaar não é um exorcismo, como geralmente as pessoas o descrevem, porque o espírito é acomodado e conciliado; e não exorcizado. À paciente é aconselhado ser continuamente atenciosa com seus espíritos, fazer as tarefas diárias que eles requerem, evitar poeira, e fugir de emoções negativas. Falhar nisso pode resultar numa recaída.

O ritual de Zaar é uma experiência purificante, que funciona com tanta eficácia para as mulheres dessas culturas quanto a psicoterapia na cultura ocidental. Ele envolve vários aspectos críticos que contribuem para seu sucesso como terapia: o paciente é o centro das atenções e recebe ajuda e atenção de seus amigos e parentes, sua experiência e sentimentos são reconhecidos como válidos.



O zaar proporciona uma experiência multisensorial com visões, sons e cheiros. A partilha ritual de comida cria companheirismo em toda cultura e época. Então, é importante entender esses rituais no contexto da experiência total. Os principais elementos da experiência do zaar podem ser usados por mulheres na nossa cultura para criar experiências de dança mais significativas, no contexto ritual que preferirem. Isso poderia ser feito no contexto religioso ou mesmo leigo.

É importante ressaltar que o Zaar, como ritual, é algo bem diferente daquele praticado para a dança do ventre, pois carrega uma simbologia e uma religiosidade fortíssima, que não deve ser menosprezada.
 
Fonte: The zar revisited by Me'ira.




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