A particularidade de cada mundo no Tribal Brasil

por Kilma Farias


“Qualquer técnica corporal que se apresente como modelo, tende à alienação, pois deixa de lado o manancial criativo da práxis, fator fundamental do desenvolvimento humano e igualmente importante à criticidade necessária à formação de uma sociedade livre e desreprimida”. (MEDINA, 1990, p. 25).

Alunos do Studio Lunay | Foto de Renata Chaves
            É com essa citação de João Paulo S. Medina, em seu livro O Brasileiro e seu Corpo: educação e política do corpo, que inicio o primeiro texto do ano da nossa coluna Tribal Brasil.

            Faz-se mister adequar cada técnica, cada movimento ao corpo de cada aluno. Não deve haver uma imposição de fora para dentro do corpo, mas uma experimentação de movimentos, uma vivência significativa e resignificada por nossa própria vivência para aí se aflorar o movimento com toda a sua verdade e evocação poética. Percebo a dança em sala de aula como uma experiência única a cada participante, professor(a)/aluno(a), onde o processo é a grande experiência e um agente transformador constante desses atores.

            Penso que o grande desafio de se construir um estilo de dança é cuidar para que o mesmo não caia em um modelo pronto, aonde nada pode ser relido ou reinventado. Atualizar conceitos, contextos e circular movimentos dentro de um estilo de dança, como por exemplo o Tribal Brasil, é assegurar a formação de bailarinos artisticamente críticos e não alienados, catequizados, ou enlatados, mas profundamente oxigenados de mundos e possibilidades criativas.

Lunay | Foto de Renata Chaves

            Há um mundo a se discutir. “O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo, comunico-me com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável” (MERLEAU-PONTY, 1999). Isso me fez pensar a física quântica introduzida por Albert Einstein em seu livro O embrião da futura física quântica, e posteriormente desenvolvida por Max Planc. Por quê? Diz a física quântica que o universo não responde ao que desejamos, mas ao que somos. Se desejamos ser diferente, seja em que área for de nossa ilusória vida, devemos primeiramente mudar nossa vida. Outro ponto de abordagem da física quântica é equiparar matéria e energia, uma vez que a matéria não existe quando observada à sua ínfima partícula atômica, onde transitam elétrons em saltos quânticos de uma camada a outra por ganhos de energia. Matéria ganha energia. Energia é matéria e vice-versa. “Não possuir o mundo” mas estar em comunicação com ele é um pensamento bem simpático à física quântica. Neste sentido, pensamento passa a ser corpo, e aí se instala o paradoxo. Se vivo o pensamento, por este ser corpo, podemos pensar numa nova possibilidade do mundo ser sim aquilo que pensamos, repensando assim a Fenomenologia da Percepção de Merleau Ponty, porém não negando-a, visto que nada possuímos pois a matéria só existe no plano da percepção e em relação a uma testemunha que a observa. Precisamos do outro para existir. É fato. Partindo desse pensamento, nossa dança só é dança em relação ao outro, mesmo que ela aconteça em nós e seja tão verdadeira em nós, para que exista no mundo ela precisa ser percebida por um outro. Executar sempre a mesma dança, tolhida por limitações e imposições de uma técnica é anunciar a morte do potencial criativo; é negar vida à arte dando lugar a uma cultura de massa que dita as regras e sinais para cada movimento, transformando a dança em algo mecânico; e bailarinos em produtos de série com marca registrada.

            A fragmentação do corpo, essa modelagem física a que os bailarinos se submetem escravizando-se numa técnica em nome de um pensamento do corpo/dança ideal, deixam o bailarino alheio ao seu corpo/sua dança. Precisamos pensar mais nas possibilidades de relações de identidades que acontecem na dança Tribal para que o estilo continue ampliando ou borrando fronteiras; transformando o que seriam fronteiras em áreas de experimentação.

            No Tribal Brasil, aprofundar o significado de Dança perpassa pelo entendimento de um corpo que integra o sagrado e o profano sem juízo de valores, nas manifestações populares, sejam de terreiro ou de rua. Essas manifestações assemelham-se em aspectos diversos compondo uma rede interligada por todo o Brasil. Outro ponto importante a se discutir é o da individualidade no coletivo, “a força que o movimento coletivo apresenta não está na uniformidade e sim na individualidade através de qual cada dançante recebe o movimento em seu corpo” (RODRIGUES, 1997, p. 31); essa particularidade dentro da manifestação me faz pensar na impossibilidade de um corpo-modelo brasileiro, e me leva além para refletir sobre a constante atualização dos corpos-pensamento que geram realidades no mundo. Isso para mim se aplica ao Tribal: ser identidade apesar de ser tribo; resguardar sagradamente a particularidade de cada mundo, de cada bailarino que deve se encontrar em constante comunicação e atualização com os outros mundos. Assim, “Podemos dizer que a linguagem coletiva é uma matriz que se mantém viva devido às peculiaridades e aos significados que cada pessoa imprime ao movimento.” (RODRIGUES, 1997, p.31). Essa é a maior riqueza do Tribal Brasil, estimular uma dança viva, que se movimenta no individual e no coletivo em nome da pluralidade, da diversidade de corpos, pensamentos, mundos e danças.

           
Referências bibliográficas:

MEDINA, J. P. S. O Brasileiro e seu Corpo: educação e política do corpo. Campinas, SP, Papirus, 1990.
MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

RODRIGUES, G. Bailarino Pesquisador Intérprete – Processo de Formação. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1997.



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