[Dançando Narrativas] Lenda, Mito e Folclore: é tudo a mesma coisa?

por Keila Fernandes

Não, não é.


Já conversamos aqui sobre mitologia e personagens mitológicos e como eles estão presentes na nossa dança. Para além deles, personagens de lendas e do folclore também costumam ocupar um lugar especial do gosto de muitas bailarinas e bailarinos.


Contudo, os conceitos de lenda, mito e folclore, por serem complexos, podem acabar se misturando e se confundindo, e nós podemos cometer equívocos ao atribuir a um personagem ou narrativa a ideia de folclore ou lenda, quando este é parte de uma mitologia.


Pensando nisso, trago aqui, de forma simplificada, os significados destes conceitos para quando quisermos usá-los em nossa dança.


Ao contrário do que se pensa (e foi amplamente difundido), mito não é sinônimo de mentira. Os mitos são narrativas sagradas (atenção a essa palavra) que explicam o mundo e a vida. Eles nos colocam em contato com a forma como outros povos enxergam a realidade e entendem a natureza. E a mitologia, o conjunto e também o estudo dos mitos, ela está presente nas narrativas cristãs, na espiritualidade indígena e nas religiões de matriz africana.


O folclore é um conceito complexo, e também é um campo de estudo. A palavra foi cunhada por William John Thoms, em 1846, a partir dos termos anglo-saxões folk (povo) e lore (sabedoria/conhecimento) e ainda gera muitos debates e controvérsias. Mas ajuda se pensarmos na etimologia da palavra e nos lembrarmos que estamos falando de sabedoria e conhecimento popular.


O folclore abrange uma variedade cultural grande. Ele pode ser pensado como o conjunto de crenças, contos, causos, lendas, músicas, danças, festas, histórias, costumes, tradições, comidas, práticas cotidianas e outras expressões populares.


Boi Caprichoso e Boi Garantido: Festival Folclórico de Parintins.

As lendas são parte do folclore. A origem do termo vem do latim medieval legenda, e significa “aquilo que deve ser lido”. As lendas, inicialmente, contavam as histórias dos santos. E manteve esse sentido no Brasil do século XIX.

Com o tempo, o significado do termo foi se transformando. Hoje, quando falamos em lendas, estamos falando de narrativas fantásticas de origem popular, geralmente transmitidas de maneira oral (e também podem ser registradas de forma escrita). As lendas narram coisas que ocorreram com alguém em um local e tempo específico. Seus acontecimentos podem ser reais, ou não, assim como podem misturar ficção e realidade. 


Contudo, por mais que sejam conceitos diferentes e possam ser estudados e trabalhados separadamente, às vezes um perpassa o outro. A cultura está em constante movimento, e essas expressões acabam se encontrando e se relacionando em um cruzamento cultural onde podemos enxergar a continuidade das narrativas mitológicas e/ou folclóricas.


Não, o mito não é folclore. 


Como já foi dito, ele representa a realidade e a sacralidade para seus respectivos povos. E as narrativas mitológicas são tão poderosas que, mesmo sendo histórias muito antigas, sobreviveram até hoje, seja na crença, no imaginário ou na cultura pop.


A força e a permanência dos mitos pode ser verificada no folclore e nas lendas que bebem dele. Por exemplo: a figura das fadas. Originárias da mitologia dos povos celtas, após o domínio romano e a cristianização, elas permaneceram em lendas e fazem parte do imaginário popular, presentes em lendas e nos famosos contos de fadas, inicialmente narrativas populares que tinham o intuito de ensinar algo, e   foram registradas posteriormente, e hoje chegam até nós na forma de filmes e animações.


"3 Who Stand" de Brian Froud (2011/2012)/Sininho, de Peter Pan. - Disney (1953)

Ou então  o Curupira, entidade protetora das florestas que tem sua origem na mitologia Tupi e hoje aparece nas narrativas folclóricas. Nesse caso devemos nos atentar para o contexto de colonização do nosso país. Curupira foi descrito pelo padre jesuíta José de Anchieta como um demônio que atacava pessoas nas florestas e para quem os indígenas deixavam oferendas para evitar tais ataques. Assim, essa entidade teve sua imagem deturpada pela ótica cristã, e foi se transformando dentro do imaginário popular, tendo suas origens, por muitas vezes, negligenciadas e ignoradas.


Por isso, compreender que, apesar de possuírem uma ligação, mito e folclore não são a mesma coisa, é muito importante pois, como já dito anteriormente, a mitologia carrega a identidade cultural e as crenças de um povo, e embora o folclore seja o conhecimento popular, é necessário cuidado para não enxergarmos ambos de maneira equivocada, e para  trabalhá-los de forma séria.


Principalmente no que diz respeito à espiritualidades e cosmogonias indígenas, que, com o contato com os colonizadores, acabaram por penetrar no imaginário popular, e com o tempo foi sendo apagada e infantilizada em obras que tiram das narrativas indígenas o seu caráter sagrado e sua importância para seus respectivos povos.


Então, mesmo estando presentes em narrativas folclóricas, devemos sempre lembrar de que são parte de mitologias (pois estamos falando de povos diversos, com cosmogonias diversas) e um sagrado importante.


Compreender o folclore, é compreender nossa história. É entender que a cultura é mutável e adaptável. É entender o sincretismo religioso e cultural, é nos aproximar das nossas origens, da nossa linguagem e entender a diversidade enorme de nosso país. E assim, quando levarmos ao palco traços de nossa cultura, fazer isso de maneira consciente e respeitosa, valorizando as fontes das quais bebemos.



Referências bibliográficas:



BENJAMIN, Roberto. O Conceito de Folclore. In.: UNICAMP: Projeto Folclore. Disponível em <https://www.unicamp.br/folclore/Material/extra_conceito.pdf>


CASEMIRO, Sandra Ramos. A Lenda da Iara: nacionalismo literário e folclore. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. 2012.


COSTA, William. Entendendo o Folclore. In: Academia.Edu. Disponível <https://www.academia.edu/33365609>


MUNDURUKU, Daniel. Sobre mitologias e outras narrativas. YouTube. 16/03/2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9h6oq3Gc58M>


Pensando perspectivas decoloniais sobre o folclore brasileiro. In: Nonada. Disponível: <http://www.nonada.com.br/2021/02/folclore-brasileiro-decolonial/>


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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Diálogos] Diálogos

por Caique Melo

Olá!

Que PRAZER poder escrever junto ao blog Coletivo Tribal. Acompanho as escritas por aqui desdeantes deste nome e aprendi muito com as trocas que são feitas. Diante disso, primeiramente, agradecido pelo espaço!

E é com esse intuito de compartilhar que dou início a uma nova coluna, aproximando as escritas aqui no blog compartilhadas junto a minha experiência de 10 anos em estudos na dança Tribal Fusion.

A coluna Diálogos parte da ideia de conversar! Quando leio as postagens, a vontade de criar uma conversa é imensa. Isso pode ser feita em uma chamada de vídeo, claro. Mas, justamente pela informação estar aqui no blog, que propus à Aerith essa coluna e tão prontamente foi atendida com imenso cuidado, como faz com o blog. 

Então, em resumo, serão conversas com os textos aqui apresentados, para que também possamos olhar outras perspectivas, com respeito e todo amor do mundo. E claro, fica o convite para que você possa escrever sobre as nossas escritas (que são da Dança, dançadas, dançantes) e quiçá, se torne uma escrita com muitos corpos...

Antes de iniciar um diálogo com as colegas do blog, peço licença para falar bem sucintamente o que tenho entendido como dança Tribal Fusion. A ideia de misturar para mim é o meu corpo se apropriando do que chega nele como informação e como eu lido com essa informação no meu corpo. E a gente sabe que cada pessoa tem sua experiência individual e subjetiva. Então, a criação na dança Tribal Fusion passa a conter as individualidades, criando diversidade nas proposições cênicas apresentadas, mas ainda assim mantém uma proximidade seja na sua criação artística, sua história ou mesmo pelos nomes, esses últimos em uma mu-Dança constante e significativa. Eu acho isso lindo!

Então, meu corpo se apropriando dos textos do blog se relaciona inevitavelmente com minha vida pessoal (nas questões de gênero, sexualidade, cor, status social, formação educacional, etc.). É com essas minhas experiências individuais e percebendo o coletivo que o Tribal passa a ser essa reunião de diversidades, sem propósitos de domínios de poderes e do que é ou não essa dança.


Figura 1: foto de pintura aquarela do artista Marcelo Storniollo (SP/BRA), encomendada por Caíque Melo. Título: “Corpofusão”. Ano: 2020

Diante desse meu breve olhar para o que estou entendendo quanto a minha dança Tribal Fusion, no próximo post da coluna começarei a dialogar com textos da Ana Terra de Leon, Kilma Farias, Ana Clara Oliveira, Thaisa Martins e Camila Saraiva, mulheres que admiro enquanto profissionais e estudantes acadêmicas das produções dessa nossa dança de fusão e claro, acompanhando as próximas publicações para que o diálogo possa coexistir na nossa criação de Dança.

Até breve! Se cuidem e tomem vacina!


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Diálogos


Caíque Melo (Salvador-BA) atua profissionalmente como professor, dançarino, pesquisador, coreógrafo e produtor na área da Dança desde 2009. Professor de dança "Tribal Fusion" desde 2012. Professor de Dança Vogue (desde 2017) e um dos pais da House of Tremme (2020). Mestrando (2019-2020), bacharelando (2018-2021) e licenciado (2014-2018) em Dança pela Escola de Dança da UFBA. Técnico em Dança pela Escola de Dança da FUNCEB (2018).Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>
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Diálogos por Caíque Melo

Diálogos
Caíque Melo, Salvador – BA Brasil

Sobre a coluna:

O intuito da coluna é propor uma conversa entre o colunista-artista Caíque Melo com as demais colunistas do blog Coletivo Tribal, a fim de que os diálogos que estão sendo apresentados sejam “contaminados” a partir de outras “movências”. Nesse sentido, a conversa buscará apresentar pensamentos que podem ser potencializadores na nossa prática com a Dança Tribal e, talvez, um incentivador para que possamos dialogar mais entre os nossos pares.


Sobre Caíque Melo:

Atua profissionalmente como professor, dançarino, pesquisador, coreógrafo e produtor na área da Dança desde 2009. Professor de dança "Tribal Fusion" desde 2012. Professor de Dança Vogue (desde 2017) e um dos pais da House of Tremme (2020). Mestrando (2019-2020), bacharelando (2018-2021) e licenciado (2014-2018) em Dança pela Escola de Dança da UFBA. Técnico em Dança pela Escola de Dança da FUNCEB (2018).

| Foto por Ian Morais (House of Tremme)












Artigos

[Índia em Dia] Ratha Yatra - a grande procissão dos Deuses rumo aos novos tempos

 por Raphael Lopes


Bom dia leitores,

Como um inveterado apaixonado pela dança Odissi e por toda a cultura milenar que cerca e enriquece essa forma refinada de arte, não poderia deixar de registrar aqui a ocasião do Ratha Yatra - a Procissão dos Carros. Esse que é um dos mais famosos festivais hindus, onde as imagens sagradas de Jagannatha (e seus irmãos Baladeva e Subhadra) saem de seu templo principal (em Puri, Orissa) e seguem em procissão em grandes carruagens para o Templo de Gundicha.

Esse festival ocorre há pelo menos oito séculos nesse formato, e muitas tradições se construíram ao redor dessa data. Como toda festividade hindu, esse festival ocorre no terceiro dia do mês lunar de Ashadha (que coincide sempre entre os nossos meses de Junho e Julho), e se tornou muito famoso no ocidente com o surgimento do movimento Hare Krishna nos anos 70, nos Estados Unidos. Inclusive, a palavra Juggernaut (massivo ou inexorável) foi cunhada pelos ingleses no início do século passado após verem os colossais carros de madeira que conduzem a procissão das deidades.

O Ratha Yatra tem ao redor de si uma série de detalhes místicos e históricos que ganham na dança uma amálgama interessante, e atualmente muitos bailarinos de Odissi (inclusive esse que vós escreve) encontram nesse festival uma plataforma para apresentarem sua arte em forma de serviço devocional nas atividades oferecidas pelos templos vaishnavas ao redor do mundo. A dança foi historicamente um dos maiores pilares nos serviços religiosos nesses templos, de modo que muitos rituais consistiam basicamente na apresentação de danças e cantos específicos, enaltecendo e celebrando as glórias e passatempos divinos.

O atual repertório da dança Odissi foi pensado em uma forma mais aberta e lúdica de se vivenciar esses ritos, na atmosfera adequada dos palcos. O que antes era uma apresentação longa e contínua, se tornou fracionada em diversos itens que contém em si partes vitais do culto religioso: a oferenda de flores, a saudação constante aos Deuses e seres celestiais, a movimentação que cria mandalas constantes no palco, etc. Uma recensão das antigas tradições do passado, que sobrevivem se adaptando aos novos tempos. 

Ainda que não sejamos mais as mesmas sacerdotisas e devotos em seu modo estritamente religioso de se experimentar o sagrado, somos os herdeiros e representantes dessas antigas tradições que são reafirmadas e trazidas aos novos tempos toda vez que assumimos - ainda que de forma cênica - o nosso papel como sacerdotes e adoradores por meio da dança. Por um outro lado é muito importante dimensionar esse papel numinoso como uma experiência pessoal e íntima, e cuidarmos muito para não nos tornamos uma caricatura ou um pastiche do que seriam essas dançarinas sagradas.... Isso sem contar no sem número de riscos que temos em segregar ainda mais essa forma de arte, criando na espiritualidade algum tipo de elitismo que distancia mais do que aproxima de fato.

É chegada a hora de lembrarmos que o Odissi não se trata de uma dança congelada na idade média hindu, e que todos nós aqui no ocidente nem poderíamos dança-la se assim o fosse. A dança é fluída, e a história só prova o quanto ela se transformou para chegar até aqui. E mais do que nunca, a pandemia nos permitiu perceber o quanto ainda estávamos patinando em ideias pre-concebidas que nem sempre contemplavam a realidade.

É muito simbólico estarmos agora nos aproximando cada vez mais de uma nova normalidade nas atividades sociais e culturais na medida em que as medidas de vacinação estão se tornando mais amplas. As atividades artísticas (que consolidaram nos meios virtuais novas formas de se produzir e discutir arte) estão como que abençoadas por Jagannatha, cada vez mais próximas de um contato real e presencial.

Mas é muito importante não perdemos essa dimensão muito clara, entre o que é a origem espiritual e como ela se desenha na prática em nossas danças.

Tome muito cuidado com professores que se colocam como Gurus (não temos nem de longe nenhum professor próximo da envergadura real desse termo), que monopolizam a relação do bailarino aluno com a dança e cultura hindus, usando a régua da espiritualidade para isso.

Tome muito cuidado com professores que proíbam a troca e o contato com outros pensadores da dança, e que contornam sua relação em tons sectaristas disfarçados de esoterismo e misticismo. 

Que saibamos referendar nossas raízes espirituais, pra além das caixinhas ou da manipulação e controle disfarçada de pureza espiritual...

Que o Senhor Jagannatha em sua procissão, nos traga novamente os dias de glória e aglomeração, onde a arte e a rua se mesclam numa grande encruzilhada em constante expansão.

Em tempos de festa, dance para celebrar.

Em tempos de crise, dance para resistir.


Até a próxima,

Namaskar.

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Índia Em - Dia


Raphael Lopes (São Paulo-SP) é bailarino de dança clássica indiana Odissi e tem levado à dança aos cenários dos Festivais e Encontros nacionais defendendo seu caráter sagrado, conscientizando as novas gerações a buscar um aprofundamento tradicional evitando a macula à essa refinada e sofisticada forma de arte. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Que História é Essa?] INTERLÚDIO - Para Entender o Contexto da Emergência do Tribal: política e cultura nos EUA no século XX

por Ana Terra de Leon

Nos últimos posts da coluna, nós nos debruçamos sobre uma fonte específica produzida pela bailarina Jamila Salimpour. Hoje, no entanto, ao invés de continuar a análise que comecei no post passado, vou discutir rapidamente com vocês um pouco sobre o contexto estadunidense e começar a abordar relações entre política, arte e história e como isso aparece no Tribal. Assim, ficará mais fácil entendermos o próximo post e vocês terão um pouco mais de contexto para compreender a análise que virá. Vamos juntes?


Vamos começar nos situando nos termos de nossa própria dança. O ATS bellydance (American Tribal Style, recentemente rebatizado para “FatChanceBellyDance Style”) é um estilo de dança contemporâneo emergido durante a década de 1980. Podendo ser traduzido literalmente como “Estilo Tribal Americano de dança do ventre”, será aqui denominado de Estilo Tribal Estadunidense de Dança do Ventre. O ATS fusiona uma série de danças diferentes em sua estética. A sua base principal é a dança do ventre, porém aparecem elementos do flamenco e das danças indianas não só em seus passos como em sua construção de figurino. 


O Tribal Estadunidense foi feito para ser dançado em grupo, de maneira totalmente improvisada. Para isso, as bailarinas e bailarinos do estilo aprendem um vocabulário de passos, alguns possuindo senha, e os grupos se organizam de maneira a seguir uma líder, que é quem guia o improviso coordenado em grupo. A liderança pode ser constantemente trocada entre as integrantes do grupo, o que cria uma dinâmica interessantíssima de coletivo. No ATS, o grupo se sobressai à bailarina. Esta característica não se constitui apenas como um critério técnico: as praticantes e suas criadoras prezam por esta concepção como uma base filosófica para a dança.


Ué, Ana, mas você não tava falando da Jamila? Por que você tá falando de ATS? Porque meu intuito discutindo o trabalho de Salimpour é que a gente consiga entender o nosso fazer nas diversas ramificações do Tribal hoje em dia. E do ponto de vista das Fusões Tribais, compreender a formação histórica do ATS é fundamental. Todas estas fusões, estabelecidas nos anos 2000, de alguma forma ou de outra, derivam do ATS - ou pelo menos tem alguma relação histórica com ele. O estilo, no entanto, como tudo que acontece na história da humanidade, não surgiu do vácuo. Para nos aprofundarmos na história do ATS e das Fusões que dele derivam (mesmo aquelas que, esteticamente, não conversam tanto assim com ele), é necessário compreender toda a efervescência cultural envolvida na história da Dança do Ventre nos Estados Unidos. E para compreender essa dança dos Anos 1980, é necessário voltar duas décadas antes: os tumultuados e, ao mesmo tempo, frutíferos anos 1960. E é por isso que estamos começando com a Jamila!


Nos anos 1960, os Estados Unidos já eram um país com plena capacidade imperialista. O país interferiu diretamente pela eclosão de uma série de ditaduras em toda a América Latina. O motivo? Bem, é mais fácil falar em motivos. Porém, para simplificar nossa vida, ressaltei aqui um só. Em plena Guerra Fria, o mundo capitalista se via interpelado com força pelo comunismo. As elites, conglomerados de imprensa e políticos liberais se viam amedrontados pela possibilidade de que a então União Soviética conseguisse, a partir do apoio às democracias latinas, influenciar estes contextos políticos e findar o capitalismo nesses países. O comunismo se assomava sobre o mundo capitalista como possibilidade de libertação para trabalhadores e trabalhadoras - que eram a maioria populacional, e ainda o são hoje. Sob a bandeira da igualdade e da retomada do poder pelos trabalhadores, inspirava lutas por independência no Oriente e na África já havia algumas décadas, e finalmente chegou do lado de cá do mundo.

Isto não seria nem um pouco interessante para os Estadunidenses, pelo simples motivo de que perderiam relações comerciais e políticas importantes com países que eram por eles subalternizados. Certamente há mais fatores que isto, mas como precisamos voltar às nossas danças, digamos que estes fatores eram os principais. Essa relação de interferência não se deu apenas na América. Países de África se viram sob os holofotes tanto da URSS quanto dos EUA, que buscavam expandir seus modelos político-econômicos para os países envolvidos nas lutas por independência. É importante lembrar que grande parte dos países africanos ainda não eram reconhecidos como independentes e travaram lutas constantes por sua emancipação ao longo de todo o século XX. O domínio colonial europeu é ainda muito recente. A independência egípcia, por exemplo, se deu apenas em 1922, e o fim do processo é datado da década de 1950!


No final do século XIX e no início do século XX, os Estados Unidos já se colocavam, a partir da ideologia do Destino Manifesto, como salvadores das nações vizinhas. Essa salvação se dava, justamente, pela presença militar. Ou seja: por meio da imposição da força, acreditavam que poderiam colaborar com a “civilização” dos países vizinhos. A política do Big Stick é um excelente exemplo desta ideologia.


 Charge “Theodore Roosevelt and his Big Stick in the Caribbean”, de William Allen Rogers, 1904.

Os EUA se constituíram, após a 2ª Guerra Mundial, como uma potência militar e bélica. Suas política de estado e economia eram fortemente baseadas no fazer da guerra e na presença militar em outros países. A ideia de que as tropas baseadas em países estrangeiros são heróis é fortemente presente na cultura estadunidense até hoje. Sabemos que o pai de Jamila Salimpour, por exemplo, serviu em uma base militar no Egito. Certamente o pai de Jamila não foi para as bases estadunidenses em países árabes para colher flores e fazer amigos.


A partir do final da década de 1950, o olhar da política externa dos Estados Unidos se voltou para o Oriente. Sem deixar de lado América Latina e África, os “ianques” começaram a se envolver nos conflitos internos orientais em relação a independência, disputas políticas e, principalmente, combater a influência soviética nos países - um caso bastante famoso é o iraniano; o filme Persépolis aborda en passant esta questão de maneira bem lúdica.


Infográfico de 2020 elaborado pelo jornal Washington Post com as bases militares estadunidenses presentes na Ásia Menor, ou “Oriente Médio”. Mais ou menos um século depois, os EUA seguem “civilizando” à força.


Mas os Estados Unidos não foram os primeiros a estabelecerem bases militares no que popularmente conhecemos como Oriente Médio. No início do século XX, a Europa se via envolvida na invasão e manutenção de uma série de territórios - incluindo África e Ásia. Conflitos nestas e sobre estas regiões, que possuía bases militares de países europeus, foram o combustível para a explosão da Primeira Guerra Mundial (comumente marcada entre 1914 a 1928).

Numa dessas bases militares, por volta de 1910 no Egito, havia um soldado siciliano que se interessava muito pelas danças populares das ciganas Ghawazee. Em Alexandria, este homem viu uma apresentação destas mulheres nas praças, e, anos mais tarde, relatou esta experiência numa carta. Posteriormente, ele e a família migraram para os Estados Unidos. A filha deste homem, ainda criança, aprendeu com ele os primeiros passos das danças destas mulheres. Essa filha, nascida Giusippina Carmela Burzi, cresceu apaixonada pelas danças orientais, vindo a ser a famosa dançarina Jamila Salimpour.

Quem dança fusões tribais conhece a história: Jamila ensinou a Masha, que ensinou a Carolena, que ensinou a Jill, e Rachel, e Mega Ghavin, que ensinaram a etc etc etc. E no meio desta história, as linhagens vão se fundindo, se separando, e fazendo emergir uma série de estilizações dentro da estilização: a dança oriental era transformada em dança do ventre cabaré, em dança do ventre de estilo tribal, e em fusão tribal. 


Jamila Salimpour começou a dançar muito nova, e já em 1948 (poucos anos após a 2º Guerra Mundial) praticava dança do ventre em cafés e restaurantes e dava aulas. Dançou tanto no famoso The Fez quanto no Bagdad Cafe, do qual foi dona. Porém, a sua criação que é frequentemente associada ao princípio do que anos depois se chamaria American Tribal Style e depois o Tribal Fusion é o Bal Anat, grupo de dança criado na década de 1960. E é a partir daqui que a gente começa a falar sobre orientalismo.


A década de 1960, como já dito anteriormente, é marcada por uma série de movimentos culturais, sociais e políticos ao redor de todo o mundo. O contato de Jamila com a cultura oriental não é um fato isolado: a cultura ocidental - especialmente a contracultura - fazia novamente incursões ao oriente e se apropriava de suas estéticas. Os Beatles incluíam a cítara em suas músicas, Jimmy Page foi à Índia e conta que conta sobre seu primeiro encontro com Ravi Shankar, os hippies se interessavam por cultura hindu e os templos budistas ao redor do mundo começam a ganhar mais adeptos.

No próximo post, vamos entender essa relação entre a cultura estadunidense e o surgimento das danças que culminaram na emergência do Tribal, voltando ao documento que analisamos nos dois posts anteriores! A minha ideia é que fique mais fácil entender que as problemáticas envolvendo a nossa dança - tanto no nome quanto nas questões de apropriação cultural  - tem relação com o próprio processo de surgimento dela. Com estes textos, espero instrumentalizar bailarines a compreender melhor a própria prática e se posicionar de maneira mais consciente e embasada. Até a próxima!


Bibliografia: 


HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. Editora Companhia das Letras, 1995.


SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia de Bolso: 2011.


SALIMPOUT, Jamila. Jamila’s Speech at the International Conference on Middle Eastern Dance, 1997. Disponibilizado por Salimpour School em: https://www.salimpourschool.com/resources/ > http://www.salimpourschool.com/wp-content/uploads/2014/12/JamilaSpeechICMEDMay1997sml.pdf.


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Que história é essa?

Ana Terra de Leon (Florianópolis-SC) é bailarina de ATS® e Dança Oriental, historiadora, com mestrado em História Cultural pela UFSC e especialista em História da Psiquiatria no Brasil. Pesquisadora autônoma, coordena o Heréticas, Grupo de Estudos sobre História da Bruxaria, e o Tribus Nexum, sobre danças orientais e suas fusões. Participa da equipe organizadora do Praksis - Simpósio brasileiro de fusões tribais e é integrante do Coletivo Hunna - Historiadoras que dançamClique aqui para ler mais post dessa coluna! >>


[Fusion Brasil] Conheça o universo do Fusion Brasil e saiba como fazer parte

 por Kilma Farias

Kilma Farias  | Fotografia por Tareb

O gradativo autoconhecimento que o bailarino que se busca tem acesso pelas práticas de Fusion Brasil proporciona um estado de presença cênica, criando um tempo e um espaço extracotidianos: a dimensão da arte. Esse estado de presença, também chamado de corpo cênico, ocorre através de múltiplas relações que se estabelecem no bailarino e em quem observa a dança.

As relações podem ser:

- do bailarino consigo mesmo;
- do bailarino com seus diferentes observadores;
- do bailarino com o espaço físico; do bailarino com o espaço constituído pela cena e seus elementos como luz, figurino, cenografia e musicalidade;
- como também do observador consigo mesmo;
- do observador com o bailarino; do observador com os outros observadores (se houver);
- do observador com o espaço físico; do observador com o espaço constituído pela cena.

São múltiplas as percepções que envolvem uma dança, mas meu foco no Fusion Brasil está na relação do bailarino com o cuidado de si mesmo e como as memórias individuais e coletivas podem ser acessadas nesse processo, pensando o corpo cênico como uma “verdade” da expressão humana, onde movimentos internos podem corresponder a movimentos externos. Assim, encontro um vasto campo para investigar se o movimento do corpo e a subjetividade do sujeito são aspectos distintos de uma mesma realidade.


Sirlei Oliveira | Fotografia por Hebert Silva

Desse modo, o bailarino pode ser capaz de tornar visível o invisível em si mesmo? E com o praticar-se através da dança, esse invisível poderia ir se mostrando cada vez mais, trazendo a possibilidade do bailarino conhecer-se em profundidade? Essa espiritualidade que perpassa pelo corpo seria capaz de colocar o sujeito em contato consigo mesmo? 


Nesses 18 anos de pesquisas em Tribal Brasil, hoje Fusion Brasil, eu respondo sem sombra de dúvidas que sim. Pois vejo alunas chegando nas turmas com bloqueios físicos e baixa autoestima, acreditando que não dançam bem e que nunca vão dançar porque estão acima do peso ou se acham velhas, ou ainda porque não fazem movimentos perfeitos e se acham desengonçadas. Com um mês de prática vejo alunas soltas, criado sequências coreográficas e se valorizando no seu ser de sujeito, apoiando umas às outras. Pra mim isso é gratificante e me faz ter o coração leve saber que estou à serviço de uma dança que liberta. Acredito que a perfeição é algo que não está atrelado à limpeza técnica. Para Rudolf Laban (1879-1958), uma das maiores referências da dança do século XX, “a fonte da qual devem brotar a perfeição e o domínio final do movimento é a compreensão daquela parte da vida interior do homem de onde se origina o movimento e a ação.” (LABAN, 1978, p. 11). Laban olha para a interioridade, para o mais íntimo do sujeito para falar em dança, em arte do movimento. Embora contenha em sua teoria elementos essencialistas, podemos identificar um pensamento de unidade em parte do seu legado que nos ajuda na compreensão de corpo e movimento no Fusion Brasil.


Mari Pessoto  (fotografia: acervo pessoal)

Além dessa compreensão, trazemos as memórias individual e coletiva para dialogar com a prática do estilo, tema que já dialogamos em postagens passadas. Desse modo, desenvolvemos o respeito e honra à ancestralidade, assim como o respeito e honra às mulheres que caminham junto no processo, na qual chamamos de manas ou irmãs, pondo em prática a instância da sororidade.


A produção coletiva é estimulada, assim como a produção individual. Para tanto, desenvolvemos videodanças coletivas a partir de cada tema estudado, assim como vamos propor festivais online para fomentar a criação de solos, conferindo cada vez mais segurança à aluna para que se posicione frente à arte-vida.


Karine Neves | Fotografia por Nando Espinosa

No momento temos duas opções de participação nos estudos e pesquisas em Fusion Brasil. Aulas regulares todas as segundas via facebook através de chamadas ao vivo que ficam gravadas. Esse formato compõe a turma de Especialização em Fusion Brasil e através dessa turma fomentamos a produção de trabalhos coletivos e individuais. E a Turma de Formação em Fusion Brasil que já se encontra no seu oitavo ano.

Ficou com vontade de participar? Então se entregue. E saiba que estarás movendo não apenas teu corpo físico, mas principalmente teus corpos sutis até trazer transformações positivas ao seu ser mais profundo.


Seja bem-vinda, bem-vindo, bem-vinde!

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Tribal Brasil - Identidade no Corpo


Kilma Farias (João Pessoa-PB) é bailarina, professora, coreógrafa, produtora e pesquisadora na área da dança. É formada em Licenciatura em Dança e Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências das Religiões pela UFPB, desenvolveu dissertação voltada para a relação entre presença cênica e espiritualidade na Dança Tribal.  Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

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