por Ana Terra de Leon
Olá!
Se você leu o
post passado, sabe que no texto que se segue vamos responder ao roteiro de
perguntas que fizemos pra uma fonte histórica. Se você não leu o post anterior,
para tudo e corre pra esse link pra entender o contexto e depois
volta pra esse aqui, ok?
Na postagem passada
sugeri que analisássemos o discurso de Jamila Salimpour na Conferência de Dança
do Oriente Médio de 1997. Sugeri um pequeno roteiro e uma problemática para
respondermos, como veremos mais adiante.
Para fazer essa
pequena análise inicial, precisamos 1) seguir nosso roteiro e 2) saber um pouco
mais sobre o documento disponível e como ele é analisado por historiadoras. A
exemplo dos historiadores do século XIX (risos), trabalharemos com uma fonte
que é, a sua maneira, institucional.
A partir de um movimento chamado Escola dos Annales, que aconteceu na França (e
que podemos situar como iniciado na década de 1920) e reuniu muitos
historiadores. A partir desta iniciativa, que começou com uma revista, as
noções sobre o que poderia ser utilizado como documento histórico começaram a
se alargar. Atualmente, qualquer tipo de registro, escrito ou não, deixado pela
humanidade, pode ser abordado historiograficamente. Filmes, músicas,
performances de dança, receitas de culinária (ou de remédio), fotos, estátuas,
prédios!, cartas, entrevistas, literatura, poesias… As possibilidades são
inúmeras!
Os limites da
interpretação estão 1) na sua abordagem, 2) nas suas perguntas, 3) nas suas
discussões teóricas. O fato de podermos utilizar elementos da cultura popular e
de culturas mais oralizadas tornou a disciplina histórica menos focada nos
processos concernentes às elites e à branquitude. Isso também permitiu que
documentos fora de âmbitos institucionais pudessem ser analisados, o que fez
com que trabalhadores e trabalhadoras passassem a integrar as páginas dos
livros de história, bem como mulheres, os povos pretos, indígenas, asiáticos e
por aí vai.
No entanto, as fontes
escritas seguem configurando-se como as mais analisadas por nós - seja porque
há uma valorização da escrita no campo da história (o que pode e deve ser
problematizado), seja porque é o tipo de fonte sobre o qual mais possuímos
arcabouço teórico-metodológico para trabalhar, haja visto que foi o primeiro
tipo de fonte aceita na disciplina.
Retomemos portanto o
documento que trouxe no post passado. Trata-se da compilação de um discurso
proferido pela bailarina Jamila Salimpour. Como dissemos anteriormente, esse
documento você encontra no site da Salimpour School, e é um discurso da
bailarina Jamila Salimpour, proferido na International Conference on Middle
Eastern Dance, em maio de 1997 (Conferência Internacional de Dança do
Oriente Médio, em tradução livre). Vamos retomar o trecho que selecionamos no
post passado:
“Já que os musicistas eram em sua maioria amadores, e de uma variedade
de países árabes, a música se dava ao acaso. Raramente eles sabiam tocar a
mesma peça [musical], frequentemente indo para direções distintas, e eles
praticavam durante o show. Não se ouvia falar em ensaios. Não havia muitos
músicos à disposição, então não podíamos reclamar. Era mais fácil substituir
uma bailarina que um músico.
Todas as músicas que dançávamos eram em ritmos de [compasso] 4/4, com waha-da-oh-noz para taqsim. Músicas como Aziza, com pausas e mudanças no
ritmo, eram então apenas tocadas entre as apresentações.
Conforme eu trabalhava e assistia dançarina depois de dançarina, eu tentava
descrever para minhas amigas da dança algumas das coisas que eu via e que eram
diferentes. Quando Tabora Najim veio dançar na cidade, foi a primeira vez que
eu vi uma queda turca e um flutter.
Seu trabalho de véu era único e coreografado. Ela terminava cada apresentação
com um kashlama. Frequentemente
uma dançarina fazia um passo e então trabalhava variações em cima de um tema.
Se um movimento era similar ou relacionado a outro de alguma forma, eu os
categorizava como uma família. Eu cataloguei mentalmente tanto quanto eu podia
lembrar e incluí em meu formato [de dança]”.
No post passado,
elaborei um pequeno roteiro de perguntas para respondermos neste post. Gostaria
de lembrar que esta é uma análise preliminar de fonte e não um texto
aprofundado, como um artigo acadêmico seria, por exemplo. Aqui, vamos fazer uma
pequena interpretação e não uma análise propriamente dita.
1. Que tipo de
documento é esse?
Trata-se de uma fonte
escrita. É o discurso que Jamila Salimpour proferiu na 1ª Conferência de Dança
Médio-Oriental da Faculdade Orange Coast, na Califórnia. O texto fala sobre a
trajetória pessoal e profissional de Jamila na dança, contada em primeira
pessoa.
2. Quem produziu?
Jamila Salimpour o
produziu. Porém, sendo este documento ligado a um evento, é possível dizer que
ele foi também produzido pela Conferência em si, afinal há o aval das
produtoras do evento para que este conteúdo seja proferido. Além disso,
precisamos levar em consideração a veiculação do documento no site da Escola
Salimpour, tocada por Jamila e sua filha, Suhaila.
3. A quem se destinava?
Originalmente, o
documento destinava-se ao público da Conferência Internacional de Dança do
Oriente Médio. A partir da disponibilização no site da Escola Salimpour, o
documento passa a ter como público alvo praticantes e estudantes de dança do
ventre e suas fusões, e pessoas interessadas em compreender a difusão desta
manifestação artística no mundo ocidental, notadamente nos EUA.
4. Qual a intenção da
autora do documento em produzí-lo?
Pode ser visto como um
testemunho, um documento que carrega a memória de quem o produziu - e portanto
deve ser tratado metodologicamente como tal, e não como atestado de verdade
(falaremos sobre isso no próximo post!). É um tipo de escrita de si, afinal a autora constrói um discurso sobre si mesma
a partir de sua trajetória. Este tipo de documento é muito interessante para
observarmos que tipo de imagem o
indivíduo busca construir sobre si mesmo.
5. Do que se trata, qual
o assunto deste documento?
Neste documento a
autora descreve o cotidiano das bailarinas de cafés, restaurantes e boates de
São Francisco, nos Estados Unidos, durante a década de 1960.
6. Em que local e em que
data foi produzido?
Não sabemos exatamente
quando Jamila escreveu o discurso, mas sabemos que ele foi proferido entre 16 e
18 de maio de 1997, durante a programação do evento, que ocorreu numa faculdade
da Califórnia.
7. Qual o contexto de
produção? (Aqui,tente pesquisar que evento foi este)
Não é possível pensar
nesta fonte como um documento isolado: está inserido dentro de um contexto
maior - na verdade, em dois contextos maiores. Um destes contextos é o próprio
país de Jamila (Estados Unidos) na década de 1990. O outro é o contexto da
década de 1960, sobre a qual o documento se debruça mais demoradamente. O
terceiro contexto é a própria Conferência.
O evento foi pensado
por Angelika Nemeth (bailarina e professora de dança do ventre na Orange
Coast College, integrando o quadro de professores de dança), em conjunto
com Shareen El Safy (bailarina que foi editora e colunista da Habibi Magazine
entre 1992 e 2002) e Sarah Saeeda (nome artístico de Sarah C. Kent, bailarina
de dança do ventre com vasta experiência nos palcos do Egito).
8. Quem preservou e
disponibilizou este documento (o original e/ou a tradução que você leu)? Com
que finalidade?
É interessante se
perguntar por que motivo esta fonte foi preservada de maneira pública no site
da Escola da família Salimpour. Possivelmente foi preservado inicialmente por
Jamila, constando em seu acervo pessoal, e posteriormente divulgado por
Suhaila, que, sabe-se, tem um papel importante na preservação e propagação dos
ensinamentos do formato iniciado por sua mãe e continuado por ela própria.
Por tratar-se de um
testemunho, é sempre necessário ter um olhar crítico para esta produção. O
texto busca firmar uma autoridade da autora em relação aos “primórdios” da
prática de dança do ventre em seu país e sua propagação.
9. Quais pontos deste
documento lhe chamaram mais atenção?
Esta resposta é onde cada
um vai privilegiar no texto os aspectos que considera mais pertinentes de
acordo com a abordagem. Vou utilizar como exemplo a questão envolvendo as
músicas utilizadas nas performances:
Pelo excerto
selecionado, é possível captar algumas coisas a respeito da maneira como eram
estruturados os shows na época. Em primeiro lugar, podemos identificar que os
shows eram feitos com música ao vivo e que os músicos que executavam essas
apresentações não eram profissionais. A estrutura das músicas em compassos regulares
parecia ser pensada de forma a facilitar não só a execução das mesmas quanto da
dança em si.
Disso já podemos
concluir que: as performances não eram ensaiadas, e que possivelmente a prática
da coreografia não era amplamente difundida, visto o caráter improvisado da
própria execução da música. Também podemos concluir que dançar ao som de
gravações também não era comum.
10. Em relação a
nossa problemática de pesquisa, é possível estabelecer algum tipo de análise ou
resposta a nossa pergunta inicial?
Lembrando a
problemática: Quero entender como Jamila Salimpour iniciou seu trabalho
de dança e como ela estruturou suas ideias sobre como era a dança daquela
época.
A partir do excerto
lido, é possível sugerir que Jamila aprendeu seu fazer na dança ao observar
outras bailarinas e tomar como referência aquelas que tinham por origem países
do Norte da África e parte da Ásia. Podemos inferir que Jamila estruturou seu
próprio estilo de dança a partir da observação e catalogação das movimentações
destas dançarinas, separando-os em “famílias”, tendo por referência sua
similaridade ou as relações entre eles. Esta separação entre famílias se dava
com base principalmente nas variações de um mesmo passo executado elas
bailarinas. Por fim, é possível afirmar que ela preocupou-se com a estruturação
e propagação deste formato entre as amigas companheiras de trabalho e,
posteriormente, alunas de sua escola, posto que a preocupação era, justamente,
a maneira como ela poderia ensinar estes passos a outras pessoas - haja visto
que esses passos vem de danças cujo fazer se dá sem estruturação, sendo elas
expressões populares originalmente espontâneas e que estavam sendo pouco a
pouco estruturadas para os palcos.
Por hoje, é isto! Eu
sugiro que quando/se você estiver confortável com esse tipo de análise, faça
esse exercício com as pessoas pra quem você leciona: construam juntas uma
problemática e deixe como tarefa encontrar essa documentação.
No nosso próximo
“encontro”, trarei alguns apontamentos para historicizar estas informações, e
então fecharemos este primeiro ciclo de posts com a análise desta fonte riquíssima.
Nos vemos em fevereiro!
Referências:
Dicionário
de Conceitos Históricos, livro de Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique
Silva. São Paulo: Contexto, 2012.
História
e Memória, livro de Jacques Le Goff. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
Jamila’s Speech at the International
Conference on Middle Eastern Dance, 1997. Disponibilizado
por Salimpour School em: https://www.salimpourschool.com/resources/ > http://www.salimpourschool.com/wp-content/uploads/2014/12/JamilaSpeechICMEDMay1997sml.pdf
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Que história é essa?
Ana Terra de Leon (Florianópolis-SC) é bailarina de ATS® e Dança Oriental, historiadora, com mestrado em História Cultural pela UFSC e especialista em História da Psiquiatria no Brasil. Pesquisadora autônoma, coordena o Heréticas, Grupo de Estudos sobre História da Bruxaria, e o Tribus Nexum, sobre danças orientais e suas fusões. Participa da equipe organizadora do Praksis - Simpósio brasileiro de fusões tribais e é integrante do Coletivo Hunna - Historiadoras que dançam. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>