por Ana Clara Oliveira
Na matéria do mês de janeiro introduzi a coluna com o título “Em que tempo estamos na formação?” Convoquei a nossa comunidade para refletir acerca da palavra “formação” e trouxe para o debate as seguintes questões: é função das capacitações e escolas de formação em tribal abarcar as resistências dos oprimidos e compreender suas experiências de opressão, sobretudo, do Estado? Ou deveríamos focalizar apenas no universo de técnicas estabelecidas e práticas cada vez mais eficientes e inovadoras do mercado? Ao final, sugeri a ideia de que o acolhimento das reflexões, das teorias e das vivências do cotidiano na sala de aula, não é sinônimo de abandonar o aprendizado de técnicas. Ambos os caminhos, podem coexistir como potência no corpo que dança. Então, que este agenciamento possa habitar na nossa dança!
No presente texto, trago como contribuição o documentário intitulado “Quando sinto que já sei” (2014) publicado no canal YouTube da Vekante Educação e Cultura. A obra cinematográfica de 78 minutos expõe as práticas educacionais inovadoras ocorridas no Brasil. Através do documentário, esta matéria propõe inspirar as pedagogias do estilo Tribal de dança e quem sabe sulear entendimentos distintos da lógica dominante, puramente reprodutora do saber. O longa-metragem brasileiro “Quando sinto que já sei” dos cineastas Antonio Sagrado Lovato, Raul Perez e Anderson Lima é um projeto independente apresentado por Despertar Filmes, realizado com a colaboração de 487 coprodutores e financiado coletivamente via Catarse.
O filme reúne discussões acerca do ensino convencional brasileiro por meio dos depoimentos de pais, alunos, professores e alguns profissionais que também questionam o modelo tradicional de escola. Paralelamente, ilumina a importância dos valores sociais para a formação humana. No tempo de dois anos, os diretores cineastas visitaram oito cidades brasileiras e dez espaços educacionais com projetos que possuem novos caminhos para uma pedagogia mais autônoma e afetiva.
Tendo em vista a duração do vídeo, não farei um relato descritivo, tampouco uma análise profunda dos seus aspectos. No entanto, deixo aqui o convite para a apreciação do filme. Isto posto, destaco falas estimulantes que podem tecer um paralelo com o campo pedagógico do Tribal.
Tião Rocha – Educador e Idealizador do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento CPCD), inicia com a primeira narrativa de impacto ao contar que ouviu de uma diretora a seguinte frase: “as crianças são uma página em branco onde devemos escrever um belo livro”. Ele complementa: “se uma diretora de escola considera uma criança como uma página em branco, ela não entende nada de menino”. Traçando um paralelo com a pedagogia do Tribal, pergunto: de que maneira tratamos os conhecimentos que o discente já possui? Ou não incorporamos os saberes produzidos pelos educandos nas suas experiências cotidianas? A ideia da página em branco até este momento existe na educação em dança?
José Pacheco – Educador e Idealizador da Escola da Ponte e colaborador no Projeto Âncora, ressalta que o formato de escola que conhecemos é uma invenção do ocidente, principalmente, dos séculos 18 e 19 com as intenções Iluministas e no caso do Brasil, com a segmentação cartesiana, o positivismo e também com a influência dos jesuítas. Ao dizer que a escola do passado está viva no presente, ele expõe alguns trechos que podem alimentar as reflexões acerca das práticas de ensino do Tribal, tanto no âmbito formal e quanto no espaço informal:
“Quando se diz que a escola não mudou é porque ela deixou de fazer sentido enquanto construção social que sobrevive e provoca milhões de analfabetos, que provoca muita infelicidade e muito desperdício de gente. Essa escola não mudou por uma razão. Ela hoje não tem qualquer suporte nem do bom senso, quanto mais da ciência”.
“A educação não se faz para a cidadania, faz na cidadania, no exercício da liberdade responsável. Perceber o que somos, onde estamos, para onde vamos com o outro [...] Nós não queremos aula, nós queremos que a todo momento todos se manifestem na sua incompletude [...] E na sua incompletude comparando com problemas e conflitos, um com o outro, aprenda mediado por um educador a ser e a conviver”.
“A aprendizagem acontece a qualquer momento e raramente acontece durante a aula. Eu penso que muito mais acontece no recreio do que numa aula”.
“Só se aprende quando perante algo [...] alguém se interroga, alguém se aproxima e os dois com relação a fonte de conhecimento [...] fazem um combinado, ou seja, um projeto e quando isso acontece a aprendizagem deixa de ser centrada no tradicional aprendente que é o aluno, deixa de estar centrada no tradicional ensinante que é o professor de currículo, para estar centrada na relação. Está tudo centrado na relação e é na qualidade da relação [..]. que a informação é transformada em conhecimento [...] eu vou entendê-lo e vou procurar o consenso [...] há espaço direto, eu e tu, tu e eu, e no meio, na relação está resposta”.
Márcia Roberto da Silva – Diretora da Escola Municipal André Urani, relata a função do professor ao dizer que “ele deixa de ser professor e passa a ser o professor-mentor, quer dizer, como a palavra mesmo diz ele é o cara que vai mediar essa aprendizagem do aluno, então é uma quebra total de paradigmas”. Pensando na dança, temos deixado o professor-mentor florescer nas aulas, sejam elas teóricas ou práticas?
No decorrer do filme, surge a ideia do professor como estimulador de um novo estudante e de um novo sujeito que recebe o conhecimento como um desafio. Sobre os desafios, a estruturação das aulas e os conteúdos, a estudante Clélia Moreira de Macedo (IINN-ELS) salienta: “primeiro, dar direito a voz ao aluno [...] nas salas alunos de novo ano, sexto, sétimo, de idades diferentes, todo mundo junto, isso é bom, há uma socialização de idades e ideias diferentes [...] um jornal, um assunto nós trazemos para aula”. Abro um espaço para questionar: como são organizadas as aulas de Tribal? Separamos os nossos alunos por habilidades? Reconhecemos a voz do Outro? Como trabalhamos?
Ivana Jauregui Gini – Educadora Escola Livre Inkiri declara: “nossa escola é uma escola livre, é uma escola não-diretiva [...] não direciona a expressão do ser, aqui a gente acredita que cada um tem dentro de si a sua evolução [...] o que a gente faz é criar um espaço protegido onde a criança pode expressar quem ela é [...]. Na escola livre tem muitas regras, tem disciplina e tem ordem [...] aqui não xingamos, aqui não batemos, aqui não desrespeitamos alguém [...] são limites na verdade que não limitam, por exemplo, não corremos dentro da sala, mas corremos fora. Você sempre pode fazer o que você quer, mas com respeito e no lugar correto, no mesmo tempo, que a criança ganha sua força de expressão, ela também aprende a como conviver em harmonia e respeito com todo mundo”.
Outra fala encantadora surge: “a desculpa em si às vezes não é o bastante [...] se eu peço desculpa e isso é o bastante, pronto eu já esqueci tudo que poderia aprender com essa situação, já ignorei então, tem que tomar cuidado porque a desculpa muitas vezes faz a gente pular a parte importante que é a rever, resgatar”. Ambos os trechos me fizeram refletir sobre ética, afetos e convivência na dança. Como a nossa comunidade discute tais aspectos? Qual a importância de compreender a ética na educação em dança?
A respeito da relação professor-aluno destaco esta fala envolvente: “não é para, é com, o professor com o aluno, não é o aluno para o professor ou o professor para aluno [...] aprender para a vida, aprender para construir, aprender para equilibrar, aprender para ousar”. Assim, “há uma relação entre a alegria necessária à atividade educativa e a esperança. A esperança de que professor e alunos juntos podem aprender ensinar, inquietar-nos, produzir e juntos igualmente resistir aos obstáculos a nossa alegria” (FREIRE, 2015, p. 70).
Com esta matéria, findo a introdução da coluna FORMAÇÃO. Na próxima publicação, abordarei o primeiro tema: “conteúdos - qual é o conhecimento que importa na nossa dança?”
Então, convido vocês para acompanhar a coluna!
Vamos conversar?
Referências
FREIRE, Paulo. PEDAGOGIA DA AUTONOMIA. Saberes Necessários à Prática Educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra Editora, 2015.
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Formação no Tribal
Ana Clara Oliveira (Maceió-AL) é dançarina e pesquisadora do estilo Tribal de Dança do Ventre. Professora de Dança na Escola Técnica de Artes (UFAL). Doutoranda em Artes (UFMG) onde pesquisa a formação no Tribal. Mestrado em Dança (UFBA). Diretora da Zambak Cia de Dança Tribal ... Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>