[Entrando na Roda] Pioneiras na Roda: Bárbara Kale

por Natália Espinosa

As próximas publicações do Entrando na Roda serão depoimentos de profissionais brasileiras que viveram o desabrochar do estilo no Brasil. Vamos entender, através da experiência dessas mulheres, um pouco da história do FCBD Style em nosso país. Vamos colocar as Pioneiras na Roda! 

Hoje vamos conhecer a bailarina do Rio Grande do Sul: Bábara Kale!

A convite da Natália Espinosa, vou contar como iniciou minha história com a dança tribal. Esse texto é apenas um recorte do período em que eu morei nos Estados Unidos, de 2001 a 2006 e da minha participação como bailarina no grupo de ATS, o Read My Hips. Vou me apresentar primeiro: meu nome é Bárbara Vianna, sou gaúcha, moro em Porto Alegre, sou bibliotecária e tenho dois filhos. Por outro lado, uso o nome de Bárbara Kale e sou instrutora certificada do estilo Sister FCBD®. Mas eu gosto de dizer que eu danço ATS, pois é isso que eu gosto de fazer.

Acho que para entender minha experiência, é importante contar um pouquinho da minha história de vida, pois é evidente que ela modelou a forma como eu me aproximei da dança e com certeza até hoje influencia a maneira como eu me relaciono com o dançar.


Eu nasci numa cidade próxima de Porto Alegre, mas adolesci no litoral norte do Rio Grande do Sul. Quem morou em prainha na década de 80 e 90, sabe que não tinha muita coisa pra fazer no inverno. Ou seja, nunca tive oportunidade de fazer qualquer aula formal de dança. Mas cresci assistindo e aprendendo as coreografias do show da Xuxa, e recriando coreografias de filmes com o grande corpo de baile dos meus primos. Mas isso era sempre na brincadeira: na única oportunidade em que pedi aos meus pais para ser matriculada em uma aula de Jazz, recebi um grande "não" por considerarem um gasto inútil de dinheiro.


Já na faculdade de Biblioteconomia em Porto Alegre, morando sozinha e dona do meu dinheiro, decidi que eu poderia finalmente realizar meu sonho de fazer uma aula de dança de verdade: mas sabendo que não seria qualquer dança clássica, já que na minha idade (20 anos) a época de aprender já tinha passado. Sempre admirei o flamenco, mas era financeiramente inviável para mim. Então foquei na oferta de outras dança para adultos, que era bem pequena (para o meu bolso de estudante e estagiária). Entre fazer dança de salão - que precisava de par - e dança do ventre - que eu achava meio brega, escolhi a Dança do Ventre.


Não foi uma grande paixão, mas mesmo assim o relacionamento durou mais ou menos 2 anos. Eu detestei dançar em público e as roupas - com tanto brilho e salto alto - também não me agradava (vale dizer aqui que eu nunca gostei de chamar atenção. Não que eu fosse tímida propriamente, mas eu não sou aquela pessoa que gosta de chegar em um lugar e todo mundo olhar pra ela. Se isso acontece comigo, até hoje, eu sempre acho que tem algo errado.). Eu aprendi muito pouco sobre música e cultura árabe, e não tive interesse em me aprofundar. Mas as aulas eram maravilhosas. Aprender a controlar os movimentos, a técnica, a expressividade era ótimo. Quando minha professora mudou de escola, e os horários começaram a ficar difíceis de conciliar, foi a desculpa que eu precisava para largar as aulas. 


Em 2001, acompanhando meu marido no doutorado, fomos morar em Chicago, nos Estados Unidos. No primeiro ano que passei lá, meu foco foi em aprender a falar inglês e em arranjar algo para preencher meu tempo independente do meu marido. Tínhamos vários amigos, mas eles eram todos do círculo fechado dos colegas de Filosofia ou meus colegas de trabalho. Eu me dei conta que para conhecer pessoas diferentes, eu teria que fazer alguma atividade diferente. E aí lembrei da dança do ventre e me matriculei em uma escola.


Em 2002 a internet era algo muito novo, sem redes sociais e onde as páginas individuais de blogs pessoais ainda era bem incipiente. Youtube não existia - muito menos celular com câmera. Comecei a pesquisar e lembro que apareceram uns resultados estranhos - para os meus olhos - para os termos "bellydance chicago". Fotos de algumas mulheres de preto usando uns turbantes na cabeça. Achei aquilo bem coisa de americano, inclusive o nome, uma vez que eu não reconheci nada além da barriga de fora que pudesse ser chamado de dança do ventre. Associei ao puritanismo americano, e continuei minhas buscas. Encontrei a escola de dança do ventre Jasmin Jahal, onde me matriculei e  me matriculei e comecei a fazer aulas.



Website



Apesar dos meus dois anos de aulas em Porto Alegre, foi como começar do zero. A escola de Jasmin ensinava especificamente dança do ventre Egípcia. Pela primeira vez aprendi os nomes dos movimentos. As aulas eram planejadas e estruturadas em "sessões" de 6 semanas cada. Além das aulas de técnica geral de dança do ventre iniciante/intermediário/avançado, haviam aulas específicas de acessórios (véu, snujs, bengala, melaya leaf).  Todo verão havia um grande espetáculo de encerramento com participação de todas as alunas e durante o período de aulas pequenas haflas para quem quisesse se apresentar com coreografias próprias. Também eram promovidos pela escola workshops e festivais com participação de bailarinas convidadas, como o Shimmyfest.  Era uma escola dedicada exclusivamente a dança do ventre, e a organização, planejamento e comprometimento com a dança legitimava e elevava esta a um patamar bem mais alto do que a minha limitada experiência tinha me dado no Brasil. Eu fui aluna da escola por mais ou menos dois anos, entre 2002 e 2004.

Apesar de toda a infraestrutura e glamour, ainda assim eu não me apaixonei pela dança do ventre. Aprendi a respeitar a dança, mas continuei sem me identificar muito com a estética, principalmente os solos, que eu nunca tive nem vontade de fazer. As coreografias em grupo eram legais - principalmente os ensaios e as aulas, mas eu nunca tive qualquer vontade de levar a dança do ventre além daquele espaço de lazer que ocupava na minha vida.

Até que numa sexta-feira após a aula, encontrei no vestiário uma colega vestindo uma saia preta longa, se preparando para sair. Fiquei empolgada, pois achei que era uma saia de Flamenco, e perguntei onde ela estava fazendo aulas. Ela me contou que participava de um grupo de ATS, chamado Read My Hips, e que ela estava saindo da aula para uma apresentação num local próximo da escola. Eu achei interessante, pois já tinha ouvido o nome Tribal em outras conversas e como não tinha nenhum outro compromisso, fui assistir.


Nossa, e pensar que foi tão por acaso que isso aconteceu. Fiquei completamente e constrangedoramente apaixonada. Até hoje me sinto meio constrangida com o meu comportamento totalmente stalker durante o evento. Tirei milhares de fotos, e como era um local aberto, o grupo ia fazendo pequenas improvisações em vários ambientes - e eu ia seguindo. Pela primeira vez eu vi uma dança que não só me inspirava visualmente, mas me dava uma vontade louca de participar. Algo do qual eu queria fazer parte, mesmo ali, na apresentação em público. 

Criei coragem para me aproximar, puxei papo, peguei um cartão com as informações da aula e aguardei ansiosamente até a terça-feira, único dia da semana que tinha aula para iniciantes.

Cheguei na aula com meu cinto barulhento de dança do ventre, a sala estava lotada. A professora, diretora do grupo Read My Hips, Stephanie Barto, explicou como a aula funcionaria. Iniciaria com um breve aquecimento, aí dançaríamos uma música de improvisação e escolheríamos um dos movimentos ou combos para trabalhar. Depois na segunda metade, o mesmo com o vocabulário rápido. Para quem era novo por ali, era só ficar no fundo da sala e ir acompanhando da melhor forma possível. Uma loucura.

Além do choque de ter que me adaptar em dois minutos a pedagogia "vire-se", as músicas também eram algo completamente fora da minha experiência. A relação dos movimentos com a música era muito diferente da dança do ventre. Era como ter entrado em outro mundo. De fato, me vi experimentando uma invenção americana, que não tinha nada a ver com o que eu tinha aprendido de dança até então. Foi difícil, mas foi extraordinário. Errei muito mais do que acertei, mas nunca me senti mal por isso. Ouvi pela primeira vez a versão remix de Walk like an Egyptian, e até hoje, 18 anos depois, toda vez que escuto essa música visito aquela sala de aula. 


Depois dessa primeira aula, segui assistindo a todas as apresentações do grupo, comecei a pesquisar sobre o estilo, fazia aulas particulares. Continuei na escola de dança do ventre, mas meu coração já não estava mais ali. Só queria saber de ATS, e me perguntei pela primeira vez, por que uma escola de dança do ventre tão renomada quanto era a da Jasmin, não oferecia aulas de tribal. 

Descobri por acaso, em conversas de corredor, que a palavra Tribal era proibida por ali. Que como não era dança do ventre, não era ensinada na escola. E ponto. Ao mesmo tempo, nas aulas de ATS, à medida que fui me familiarizando com o repertório, pude reconhecer a similaridade de alguns movimentos com aqueles que eu já conhecia da dança do ventre. Mas a grande maioria dos combos e sequências que faziam parte do repertório do grupo eram influenciados por outras danças, poucas delas folclóricas ou clássicas. Havia um distanciamento intencional da dança do ventre e as influências mais modernas eram estimuladas. Nada era proibido.

O repertório do grupo era vivo. Apesar de existir uma base comum de movimentos de ATS (V.1, V.3 e V.4 FCBD®), que todos aprendíamos no nível básico, novos combos eram criados com frequência pelo grupo principal. Isso não afetava a identidade do grupo enquanto ATS. Criar novos combos e ter identidade própria -ou seja - não passar a vida imitando o Fat Chance era ok. Na verdade, após a formação, a relação das professoras com a Carolena era a de colegas distantes, que tinham total liberdade de espalhar o ATS da melhor forma que pudessem, sem grandes restrições. No Midwest, que é a região central dos Estados Unidos, Stephanie foi responsável por ensinar a grande parte das bailarinas o ATS. Mas essas bailarinas aprendiam tanto aquele repertório básico de ATS (que era bem pequeno) quanto os combos originais do grupo Read My Hips. O interessante dessa época é que era possível identificar numa apresentação de um grupo, pelo repertório e figurino, a sua genealogia: com quem as bailarinas haviam estudado, quais as influências externas que adicionaram tempero para seus combos. A influência da dança do ventre, nessa época, era restrita àquela que havia sido imbuída nos movimentos básicos originais do FCBD®. Já a presença dos gestos e posturas do  flamenco é muito mais evidente, principalmente no vocabulário lento: carregado de movimentos aparentemente simples, mas intensos, fortes. A postura, a presença e o domínio do palco pelo grupo se mostra pela sincronia e execução cuidadosa de cada movimento. Muito pouco da dança do ventre tradicional aparece ali.

Em meados de final de 2004, houve uma cisão completa no grupo Read My Hips quando, sem conseguirem entrar em acordo, 5 das bailarinas do grupo principal se desligaram do grupo. Como diretora, Stephanie queria mudanças, incorporar novas técnicas de movimentos e novos membros para o grupo principal. As bailarinas do grupo de estudantes, The Outskirts, que já estavam juntas há mais de dois anos, passaram a integrar o grupo principal. Um novo grupo de estudantes surgiu, The Blue Cat Tribe, do qual passei a fazer parte. Com a saída das integrantes antigas, iniciou uma época de grandes mudanças no Read My Hips.


Em Chicago, o pessoal do Tribal era bem disperso - acho que na dança do ventre também, mas como não vivenciei muito fora da sala de aula, não posso dizer com certeza. Haviam poucos grupos de ATS além do Read My Hips (RMH), que dominava a cena, e era o de maior renome. O grupo era contratado para apresentações pagas em diversos eventos, além de algumas participações sem cachê em eventos comunitários. Mas poucos destes eventos não pagos eram de dança do ventre, e os que participei com o grupo foram fora de Chicago. 

Em 2003, quando iniciou a turnê do show do Bellydance Superstars (BDSS) eu pouco tinha ouvido falar sobre tribal fusion. Importante lembrar que as tecnologias e as facilidades de comunicação que experienciamos hoje era outra, principalmente para qualquer movimento artístico underground. A maioria das pessoas não tinha celular, não participava de redes sociais e não tinha blogs (eu tive um nokia 9120 no Brasil em 1997, mas durante todo o período que morei nos estados unidos,de 2001 a 2006, só tive dois amigos que tinham celular). Eu tinha uma página no myspace, sem amigos e sem seguidores; e somente em 2005 entrei na tribe.net. Então para ficar sabendo de notícias do mundo ATS ou tribal só conversando pessoalmente mesmo - ou conversando com gente que conhecia alguém que morava na costa oeste. 

Meu círculo começou a falar sobre o assunto das meninas de Tribal que faziam parte do Show do BDSS. Sobre a parte de dança do ventre eu só ouvia muitas críticas, devido às bailarinas terem sido escolhidas pela aparência e não pela competência técnica, etc. (dor de cotovelo, talvez?). Só para entender as conversas eu fui atrás para descobrir o que era Tribal Fusion e como isso seria diferente do que eu já estava aprendendo. Consegui com a Stephanie vários vídeos que ela recebia pelo correio da Heather Stants, diretora do Urban Tribal e ex-membro do RMH. Assistindo esses vídeos, pude começar a compreender por que a Stephanie, mesmo mantendo a estrutura de ATS no grupo RMH, se esforçava em trazer diversas influências e técnicas externas para desenvolver novos combos, o que fazia do grupo um híbrido: "ATS Fusion", por assim dizer, mas sem todo o conflito e crise existencial que vivenciamos hoje. E esse processo estava acontecendo com vários grupos de ATS, uma vez que era muito mais fácil conseguir uma instrutora de fusion para dar um workshop fora de San Francisco, do que viajar até San Francisco para ter aula com a Carolena, que nunca saía de lá. ATS puro só quem fazia era o Fat Chance, mas o ATS híbrido ainda assim era aceito como tal.


O que se seguiu nos próximos dois anos foi uma imersão total. Fui convidada para integrar o grupo principal e, num primeiro momento, recusei. Eu estava bem satisfeita participando das aulas e das pequenas performances do Blue Cat Tribe; a ideia de dançar profissionalmente me parecia muito além da minha capacidade como bailarina. Mas justamente o desafio de ultrapassar meus limites acabou por me estimular a aceitar. 

Sabendo que a minha estadia nos EUA era finita, me dediquei quase que  exclusivamente para a dança, aproveitando tudo o que eu podia. Fiz workshops de várias danças com o objetivo de melhorar minha técnica e contribuir para o desenvolvimento de novos combos para o grupo. Dancei em eventos e lugares fantásticos, nos quais nunca imaginei entrar.

House of Blues




Raquy&RMH - 2005

Mixed Arkadesh

King Tut Opening - Field Museum 2006


Silk Road no hotel Four Seasons

Silkroad Oasis

Karsh Kale

Dancei com música ao vivo espetacular (fotos Brent Roman at old town, Raquy and The Caveman, Karsh Kale), e às vezes nem tanto. Viajei para participar de eventos dedicados ao Tribal Fusion (Fort Launderdale, Portland, e Kansas City). Assisti duas vezes ao show do Bellydance Superstars e uma ao Yarddogs Roadshow com Zoe Jakes. Fiz workshops com grandes nomes do tribal (Jill Parker, Rachel Brice, Heather Stanz, Sharon Kihara, Kami Liddle). Passei por perrengues no palco (snujs e apliques de cabelo voadores, quedas,milhares de erros) e muita farra nos bastidores.

Em 2006, já se aproximando a data do meu retorno ao Brasil, participei da apresentação do grupo no Spirit of Tribes, na Flórida. 

Em 2005, sabendo que eu retornaria ao Brasil no ano seguinte, comecei a fazer planos para a volta. Comecei a trabalhar na minha área profissional, e ao mesmo tempo comecei a pesquisar sobre o Tribal no Brasil, para descobrir se eu conseguiria continuar fazendo aulas e dançando quando eu voltasse.

Head My Hips - Spirit of Tribes (2006)

Na época, o site do Read My Hips tinha uma das listas de links mais compreensivas sobre tribal, nos Estados Unidos e fora. Para o Brasil havia apenas uma referência, que era a Shaide Halim, de São Paulo. Num vídeo que assisti, ficou bem evidente que o trabalho dela era muito diferente do ATS que eu estava fazendo, começando pelo fato de que era coreografia e não improvisação coordenada. Com essa perspectiva, aos poucos fui me dando conta de que se eu quisesse continuar dançando, eu mesma teria que dar aulas quando voltasse. Mesmo que em outros estados já houvesse gente dançando e estudando tribal fusion, eu deduzi, baseada na experiência do Midwest, que tudo devia ser baseado nos vídeos de tribal fusion da Rachel Brice e do BellyDance Superstars; e que no Rio Grande do Sul não tinha nada. Após duas turnês do BDSS, quase todo o estúdio de dança do ventre tinha alguém dando aula de "Tribal", que nada mais era que dança do ventre com choli de meia arrastão e dreadlock de lã. A Stephanie então me deu diversas orientações e oportunidades para aprender a ensinar ATS. Mas mesmo assim, eu não estava nem de longe preparada para a realidade que encontrei quando voltei ao Brasil.

Acho que deixei bem claro desde o começo desta narrativa, que eu sempre dancei por mim mesma. Eu nunca tive o objetivo de me profissionalizar como bailarina, nem de mudar de carreira. A dança não é minha vida. Se eu me tornei "professora" foi de forma acidental e relutante. Eu amo ser aluna. Sabe aquelas pessoas que não gostam de liderar no ATS? Sou uma delas. Adoro a vida de seguidora. Na minha mente, eu chegaria em Porto Alegre, começaria a dar aulas, montaria um grupo e pronto, reviveria todos os bons momentos dos meus tempos de RMH. Bem fora da realidade essas minhas expectativas.

Ingressos para o show do Bellydance Superstars (2006)



Em 2006 me inscrevi no orkut, pois sabia que era muito mais popular com o brasileiros do que o myspace, tribe e facebook. Tinha lá diversas comunidades discutindo Tribal. Já fiquei feliz, pois isso significava que existia Tribal no Brasil. Entrei nas comunidades, mas não me manifestei nas discussões, pois não curto. E também eu estava completamente por fora da realidade das brasileiras, então não tinha cabimento ficar dando pitaco. Mas lembro que fiz contato com uma menina de Santos, que também disse ser difícil encontrar gente para dançar, e informações mais aprofundadas sobre a dança na internet. Era a Mariana Quadros.

No Orkut, descobri um evento que estava programado para outubro em Porto Alegre. O primeiro encontro Tribos do Sul, com workshop de dança tribal com Shaide Halim. Fiquei empolgadíssima e me inscrevi para participar, pois seria minha oportunidade de apresentar meu trabalho, me integrar com todo o pessoal de tribal da minha cidade e fazer contatos e vivermos felizes para sempre. Hehehe, que inocente.


Tive muitas gafes, mas acho que a pior delas foi a de não me dar conta de que eu estaria adentrando um mundo do qual eu não sabia absolutamente nada: não só a cena artística no Rio Grande do Sul, mas a cena da Dança do Ventre. E no RS, assim como na maioria dos estados, o Tribal saiu direto da comunidade da dança do ventre. Muito diferente da minha experiência nos EUA. Infelizmente, para essa incipiente comunidadeTribal migraram não só as bailarinas que se identificavam com a estética do tribal (pois sejamos francas, nesse período só tinha como adotar a estética, pois a técnica era impossível) , mas todas as mazelas, antipatias e facções que fazem parte da comunidade da Dança do Ventre.

Minha participação nesse evento foi ótima, principalmente os contatos durante o workshop da Shaide, que antecedeu o show. Eu aprendi muita coisa, pois era um workshop com técnicas de flamenco e uma coreografia de dança indiana, o que eu sempre gostei de misturar com o ATS que eu conhecia. Inúmeras das bailarinas que participaram do workshop tinham técnica excelente, e pegavam os movimentos muito melhor que eu. Mas no show de encerramento me decepcionei muito: foi a primeira vez que eu dancei um solo sem estar com o Read My Hips ao meu lado, então eu estava muito nervosa. E mesmo assim, sem falsa modéstia, a minha foi a única apresentação Tribal que aconteceu naquela noite.  Muitas tentativas de fusão de dança do ventre, algumas ótimas, outras nem tanto. Mas de Tribal não tinha nada, nem mesmo a roupa. Nos bastidores várias pessoas já ficaram pasmas com a minha roupa, depois da apresentação ficou um silêncio antes das palmas, e muita gente veio falar comigo depois. Consegui um lugar para dar aulas ali mesmo. Mas por outro lado, a minha presença expôs claramente o que era Tribal e o que era dança do ventre. E nem todo mundo ficou feliz com isso.


Dali para a frente eu não parei de dar aulas, mas pouco consegui me integrar com as outras bailarinas da região. No primeiro ano não fui convidada a participar de nenhum evento, nem para ministrar workshops. No início várias alunas que me assistiram dançar vieram fazer aula comigo, mas rapidamente desapareceram. Demorei para me dar conta de que por demanda do público algumas escolas de DV já ofereciam aulas de "Tribal", mas como eu não estava vinculada a nenhuma delas, as alunas não podiam fazer aula comigo. E como eu não participava de nenhum evento, permanecia na obscuridade. O que francamente, não fazia muita diferença pra mim, pois o que eu queria mesmo era dançar e montar um grupo. Aquariana que sou, queria desbravar novos mundos, e trazer gente que não era da dança do ventre para fazer Tribal. 

Através de amigas em comum, conheci a Muna Zaki, diretora da Escola de Dança do Ventre Harem, e produtora da Feira Harem de Dança do Ventre. Dei aulas na Harem, e me apresentei em vários eventos promovidos pela escola. Em 2008, participei da organização do evento que trouxe a bailarina Ansuya ao Brasil. Foi um grande espetáculo. 


A paixão da Muna pela Dança do Ventre é tão grande que até me contagiou um pouco, e eu perdi o ranço com a Dança do Ventre. Em 2008, participei do primeiro Introspetáculo, promovido pela Bruna Gomes. Essas duas pessoas, longe ou perto, são minhas parceiras até hoje.

Durante esse período (2006-2009), que eu chamo de minha 2º fase, o repertório que eu ensinei foi totalmente ATS Read My Hips. Eu sabia que o repertório era em sua maioria único, mas jamais questionei o fato de ser ATS ou não. Apesar de eu manter a estrutura de aula padrão da Stephanie (aquecimento, improv-lento, técnica, improv-rápido, técnica) eu adotava diversas técnicas de tribal fusion, para ensinar movimentos, postura e musicalidade. Mas a improvisação coordenada e a dança em grupo eram o foco.


Triste dizer então que durante todo esse período eu nunca mais dancei em grupo. A coisa que eu menos queria era dançar solo, e era justamente o que eu tinha que fazer. Isso criava uma expectativa errada nas pessoas que me assistiam. Eu dançava sozinha por falta de opção, na esperaça de inspirar alunas para conseguir ensinar os combos para dançarmos em grupo. E as pessoas que me viam dançar na sua maioria queriam aprender a técnica para dançar solos ou aprender coreografias. Um paradoxo que eu não consegui resolver.

Em 2009 eu fui para São Paulo para participar do evento Tribal y Fusion, promovido pela Bele Fusco. Foi incrível. Conheci pessoalmente muita gente com quem eu só tinha falado pelo orkut, vi como o Tribal tinha se desenvolvido pelo Brasil afora, ainda que não fosse nada daquilo que eu tinha experimentado com o Read My Hips.

Bárbara Kale e Mariana Quadros no Tribal Y Fusion , em 2009.



Flyers, cartões e postais adquiridos no Tribal y Fusion (2009)


ATS ainda era só uma sigla jogada nas conversas, mas ainda sem qualquer representação. Tribal Fusion em todas as suas vertentes, parecia ser o único investimento. Pessoalmente eu só sabia que eu estava cansada de dançar solo. Na época eu já estava grávida de 3 meses, estava me mudando de Porto Alegre para o interior do estado e não tinha mais energia para recomeçar. E sem stress, eu terminei o ano "letivo", me despedi de minhas alunas e fiquei os próximos 4 anos sem dançar.

Esse ano de quarentena, que certamente não foi fácil para ninguém, me lembrou um pouco meu hiato da dança. Da mesma forma que eu não me arrependo de ter parado de dançar antes, também estou em paz comigo mesma por não ter dançado quase nada em 2020. Mais tranquila ainda talvez, pois sei que posso voltar quando eu quiser.

Formação em ATS com Carolena Nericcion e Megha Gavin no Festival Campo das Tribos, e 2015.


Em 2014, meio que por acaso, uma amiga de Porto Alegre, professora de dança do Ventre, se mudou para Santa Maria, onde eu estava morando. Ela, muito empreendedora, já me convidou para dar aulas, participar do show que estava promovendo e tal. Eu, me sentindo super bem na minha aposentadoria, dei um monte de desculpas, mas fui assistir ao show. E ali, sentada na platéia, eu senti uma vontade de voltar. Comecei a reativar minhas contas, fazer pesquisas na internet e me deparei com uma outra realidade. ATS bombando, milhares de grupos, escolas exclusivamente dedicadas ao tribal e tudo mais. E ainda mais que isso Carolena Nericcio viria ao Brasil ministrar uma formação em ATS. Que fantástico! Que motivador. Entrei numa lista de espera, e em cima da hora consegui uma vaga para participar.

A participação na formação em 2015 daria um outro texto, mas o mais marcante pra mim foi a experiência de finalmente, depois de nove anos, poder dançar ATS em grupo. Se eu for bem sincera, vou dizer que a melhor parte de participar do Festival Campo das Tribos (atual Congresso Tribal) é ficar dançando em grupo com um monte de gente diferente.

Minha 3ª fase de vida na dança começou após a formação.  Foi um recomeço, com mais experiência de vida e sem expectativas ingênuas. Retomei meus contatos, criei novos e consegui, graças a colaboração e apoio de muitas pessoas, criar até um grupo de ATS com minhas alunas, o Trelissa.

Pós quarentena não sei muito bem o que vai acontecer. Não quero me aposentar ainda, mas tampouco sinto uma grande pressão para dar aulas e produzir conteúdo. Como boa bibliotecária, sou excelente disponibilizadora de conteúdos de terceiros, e indico todas essas professoras ótimas que se mobilizaram na quarentena para minhas alunas não se sentirem abandonadas por mim. 

Mas eu não danço a distância. O que me conquistou no ATS foi a interação em grupo. Sem isso, a dança pra mim não tem muito sentido, então eu aguardo ansiosamente o retorno das atividades presenciais para encerrar meu período de hibernação.




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Entrando na Roda

Natália Espinosa (Campinas-SP) é dançarina e professora de Estilo Tribal de Dança do Ventre e ATS®.Tornou-se Sister Studio FCBD® em 2013 e está cursando o programa The 8 Elements™ de Rachel Brice. Natália orienta o Amora ATS ® e participa do TiNTí, grupo profissional de ATS® composto por sua professora Mariana Quadros e por Anna Pereira. Sua grande paixão é ensinar e seu palco é a sala de aula.  Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Old is Cool] Localização do Old School no Estilo Tribal de Dança do Ventre

 por Mari Garavelo 

Sejam muito bem-vindas e muito bem-vindos à minha coluna aqui no blog! Estou muito feliz com essa oportunidade de trazer um pouco da minha pesquisa e das minhas reflexões sobre esse tema para vocês.

Esta coluna tem o objetivo de fazer pequenas análises e levantar reflexões sobre a velha escola do tribal a fim de aproveitar esse universo de possibilidades e idéias que ela traz para evoluir nosso estudo e prática da dança atualmente.

Vamos começar pelo próprio conceito de uma velha escola, ou old school: o que significa? 

A expressão provinda do inglês, old school, ao pé da letra em português é “velha escola”, podendo também ser interpretado como “à moda antiga”. Esse termo se refere a um conjunto de elementos do passado que foram bastante utilizados ou valorizados em determinada época, e que são considerados hoje um pouco obsoletos, com um quê de démodé (palavra que provém do francês e significa “antiquado”, podendo se referir a algo considerado fora de moda, ou que já teve seu momento).

O old school pode referir-se também a algo que se tornou clássico ou estabelecido como tradicional de alguma maneira, como tatuagem old school, hip hop old school, moda old school etc.

Exemplo old school na moda, tatuagem e artista do movimento hip hop, Tupac Shakur.

 

Vale muito ressaltar que old school não é necessariamente o mesmo que vintage ou retrô. Vintage se refere geralmente a elementos que são originalmente antigos, que foram produzidos no passado, enquanto o retrô tenta reproduzir a estética do vintage em elementos atuais.

Outra característica muito importante é a de que no conceito de old school nós podemos observar um conjunto de elementos de uma determinada época e que geralmente fizeram parte de uma vanguarda (guarde essa palavra!) de um nicho específico. Então, quando falo em hip hop old school não falo necessariamente da mesma época da tatuagem old school, são momentos diferentes na linha do tempo, mas que tem possuem essa característica da vanguarda e do pioneirismo em comum.

Compreendendo o conceito podemos começar a traçar uma pequena linha do tempo da história do Tribal, e aqui, eu falo exclusivamente do que conhecemos como Tribal Fusion ou Dança do Ventre Tribal para buscar seu momento de vanguarda e começar nossa análise. Minha pesquisa não engloba o ATS (FCBD Style ) porque além de não ser meu foco de estudo também exige uma análise dedicada.

Um último disclaimer antes da linha do tempo é que gostaria de afirmar que não concordo com a ideia de que o Tribal Fusion tem uma história linear. Ao meu ver, não há histórias lineares, existem pontos na história da linguagem que são muito importantes e eles estarão mencionados na linha do tempo para nossa análise, mas, no geral, o desenvolvimento do que nós chamamos de Tribal hoje esteve em alguns lugares ao mesmo tempo e foi se imbricando com as trocas, eventos, as demandas e a internet. Sendo assim, esta linha do tempo abaixo é bastante simplificada, não contempla todos os grandes profissionais envolvidos no Tribal, mas já nos dá um panorama.

 

Conforme podemos observar na imagem acima, a partir dos anos 2000, houve um boom de eventos e personalidades que foram cruciais para o desenvolvimento e o crescimento do Tribal Fusion. Dentre estes, estão a criação do Urban Tribal, a entrada de Rachel Brice no Bellydance Superstars, a amizade e parceria que ela criou com Mardi Love e o Serpent Rouge, o show memorável (e que eu sei que você ama!) que saiu em turnê com a última formação do The Indigo.

É possível observar, no período que vai de 2000 a aproximadamente 2008, que houve muito pioneirismo e trocas entre as criações que estavam sendo feitas. Eu acredito então que este seja o fragmento da linha do tempo em que se localiza o Tribal Fusion old school. Antes desse período, o tribal se desenvolvia de uma forma mais lenta, e, a partir desta época, observamos uma eclosão de eventos importantes para a história do estilo.

O que pode ter influenciado e ocasionado esta eclosão? De que forma esse período ditou como a linguagem se desenvolveria futuramente? Nas publicações seguintes desta coluna vamos buscar as respostas, mas, por ora, temos aqui bastante material para estudar e pensar.

Aqui abaixo está um link de uma playlist que eu criei com vídeos que eu costumo usar para estudar e ensinar sobre tribal old school, pega uma pipoca e faça um watch party com as amigas (tem cada pérola!)!

Não deixe de comentar o que achou dessa postagem e se ficou alguma dúvida, isso é muito importante para o desenvolvimento dos próximos textos.

Até mais!


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Old is Cool


Mari Garavelo (Osasco-SP) iniciou seus estudos em dança do ventre e Tribal Fusion em 2006 e desde então vem aprimorando seu trabalho através de aulas regulares e oficinas com diversos profissionais renomados nacionais e internacionais. Instrutora de Hatha Yoga e Yogaterapeuta formada pela Humaniversidade Holística de São Paulo com registro na Aliança do Yoga.  Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

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Old is Cool por Mari Garavelo

 Old is Cool

Mari Garavelo, Osasco – SP, Brasil


Sobre a coluna:

A coluna pretende dedicar-se a análise, reflexão e conhecimento de tudo o que envolve o que é Old School (ou Velha Escola) dentro da linguagem de dança do ventre tribal. Vamos compreender e refletir sobre esse universo de possibilidades e história que o esse recorte pode trazer para nosso estudo atualmente.


Sobre Mari Garavelo:

Iniciou seus estudos em dança do ventre e Tribal Fusion em 2006 e desde então vem aprimorando seu trabalho através de aulas regulares e oficinas com diversos profissionais renomados nacionais e internacionais. Instrutora de Hatha Yoga e Yogaterapeuta formada pela Humaniversidade Holística de São Paulo com registro na Aliança do Yoga. Faz pesquisas e experimentação de diversas danças do mundo, desenvolve um trabalho de inclusão do pensamento e prática do Yoga em ambientes corporativos e nas aulas de dança.





Entrevista

https://coletivotribal.blogspot.com/2015/10/entrevista-38-mari-garavelo.html

Clique na imagem acima para acessar a entrevista.

Artigos

Clique no título do menu acima para ser redirecionado ao artigo desejado. Boa leitura! 

[Dançando Narrativas] Aquelas que Escolhem os Mortos: Trabalhando a Figura das Valquírias na Dança

 por Keila Fernandes

 

Em 2017, fui convidada pela Aerith Asgard a ministrar uma palestra para o nosso grupo sobre  as Valquírias. Nesse ano apresentaríamos uma coreografia sobre elas para o espetáculo Death, do Underworld Fusion Fest. 

Para isso, desenvolvi uma boa pesquisa sobre essas entidades, e montei uma apresentação para explicar para o grupo quais aspectos tínhamos escolhido trabalhar, e porquê. 

Hoje, quero compartilhar essa pesquisa com vocês, para mostrar um pouco do que venho falando nos primeiros textos da coluna: como desenvolver uma personagem mitológica na dança.

 

VALQUÍRIAS: REPRESENTAÇÕES FEMININAS NA MITOLOGIA NÓRDICA

 

Introdução

 

As valquírias são entidades femininas, filhas e servas de Odin. Sua imagem mais recorrente é a de belas mulheres que cavalgam pelo céu, recolhem os mortos nos campos de batalha e os levam para Valhalla.

A palavra valquíria deriva do nórdico antigo valkyrja (plural valkyrjur), que é composta por duas palavras; o substantivo valr (que se refere aos mortos em batalha) e o verbo kjósa (que significa "escolher"). Portanto o próprio nome já faz referência ao principal papel que essas entidades possuem.

No século XIX, a Era Viking passa a ter grande importância na construção de uma identidade escandinava. A representação dos guerreiros e das mulheres é construída com cuidado para esse fim. As valquírias estão inclusas nesse processo. Seguindo o padrão de beleza vigente, elas são representadas como mulheres que, apesar de portar armas, tem traços e figura delicada, usam vestidos finos e se destacam pela beleza.

 

Valquírias da ópera “O Anel dos Nibelungos”, de Richard Wagner.

Atualmente são muito recorrentes em jogos e HQs, nos quais são representadas, geralmente, como guerreiras com poderes de regeneração, e como aquelas que levam os mortos para Valhalla.

 

Lenneth, personagem do jogo de 1999 para PlayStation: Valkyrie Profile: Lenneth.

 

Parte 1: A Diversas Faces das Valquírias

 

Guerreiras que escolhem os mortos, profetisas, deusas do destinos, esposas e amantes. As valquírias possuem facetas diversas, e para escolher os aspectos que seriam desenvolvidos na coreografia, tivemos de buscar conhecê-los nas fontes históricas.

A iconografia (estelas, esculturas e pingentes), apresenta duas facetas das valquírias: a mulher guerreira e a atendente no Valhalla.

A imagem da guerreira armada com lança e escudo e portando cota e elmo só é encontrada nos pingentes da Era Viking, cujas amostras datam no século IX.

Pingentes representando valquírias com equipamento bélico. Dinamarca, século VII - VIII


Já as peças do final da Era Viking (século 11 d.C) e do início do período de cristianização, apresentam figuras mais domésticas usando vestidos e portando apenas uma lança ou um corno de hidromel, evidenciando seu papel de atendente no Valhalla.

 

Pingente representando uma Valquíria levando hidromel. Suécia, século X.

Para Hilda Davidson, a principal característica das valquírias é o fato de serem mulheres sobrenaturais capazes de escolher os rumos de uma batalha.

Para a mesma autora, existem quatro principais facetas das valquírias de acordo com as fontes. Estes são: atendentes (servindo no Valhalla), amantes/esposas dos guerreiros, guerreiras e profetisas.

Guerreiro portando escudo com espiral, ao lado valquíria, triskelion e valknut. Estela de Stenkyrka Lillbjärs III, Gotland, Suécia, séc. IX. Fonte: Allan, 2002: 65.


O simbolismo do Cisne

Na poesia édica[1], as valquírias aparecem como esposas espirituais dos heróis e como aquelas que escolhem os mortos. Em alguns poemas, as valquírias são associadas com as donzelas cisnes e profetisas, assumindo um papel parecido com as nornas[2], sendo entidades ligadas ao destino.

O cisne aparece nas pedras e estelas como o animal responsável por guiar os mortos até seu destino.

Estela de Alskog e pedra Rúnica de Sanda - Suécia - 1020/1050. Em destaque: imagem do cisne que guia o morto para seu destino.


Tecelãs do Destino

 

Segundo o mitólogo Rudolf Simek, a tecelagem e a fiação, como símbolo de determinação do futuro, estão ligadas apenas às valquírias, visto que não há nenhuma fonte escandinava que fale de algo parecido sobre as nornas, sendo até mesmo o número 3 inspirado pelas parcas gregas.

 

No poema Darradarljord, as valquírias são representadas como guerreiras que usam suas lanças para tecer uma tapeçaria com entranhas, cabeças e membros de pessoas mortas.

 

Deusas da Morte

Segundo Régis Boyer, o aspecto guerreiro das valquírias foi herdado das tradições germânicas arcaicas nas quais as mulheres tinham papel de sacerdotisas em ritos de morte e batalha.

As tradições celtas de deusas da morte e da guerra, como a deusa Morrigan, também influenciaram a figura guerreira das valquírias.

Segundo Charles Donahue, celtas e germanos estiveram em contato durante o período romano, e dividiam uma crença em ferozes espíritos ligados à guerra, o que pode ter tido influência na literatura viking a respeito de entidades como as valquírias.

Os poemas escáldicos[3] transformaram as valquírias em entidades guerreiras maravilhosas aos olhos dos humanos. Porém com um aspecto menos violento e mais feminino.

Também há, em antigos encantamentos nórdicos germânicos, a presença de ferozes espíritos femininos ligados à morte, ao destino e à magia, o que nos leva a crer que essas entidades femininas sempre estiveram presentes na espiritualidade desses povos.

Segundo Johnni Langer, os pingentes de valquírias encontrados em túmulos de mulheres indicam que as mulheres tinham uma forte presença nos cultos odínicos


Pingentes representando diferentes aspectos das valquírias.

Parte 2: Xamanismo e Corvos

 

O corvo está sempre presente nas narrativas nórdicas como um animal ligado ao deus Odin.

Em alguns poemas eles aparecem rondando o campo de batalha, e são designados com o adjetivo welceasig (em inglês arcaico) que significa escolhendo os aniquilados. No poema nórdico "Hrafnsmál"  há um diálogo entre um corvo e uma valquíria.

A ligação com as aves está presente desde as formas mais primitivas de religiosidade escandinava. Petroglifos da idade do Bronze (1000 - 400 a.C.) trazem imagem de aves e sacerdotes vestidos como aves, evidenciando elementos xamânicos na religiosidade nórdica.

Além do corvo, o cisne também é um animal que tem ligação com as valquírias, representando a função de guia e sendo o animal que entrega os mortos no Valhalla.

 

 Parte3: De Poderosas Entidades a Figuras Domesticadas

Assim, o que é possível concluir é que as valquírias possuem facetas diversas que foram se fortalecendo ou se enfraquecendo com o tempo. É possível que sua origem esteja nas tradições primitivas pré-viking, onde encontramos figuras femininas ligadas à morte e à guerra, presentes em ritos sacrificiais e proféticos, tendo o poder sobre o conhecimento do futuro e da morte, além das práticas xamânicas.

Tais representações começam a se modificar com as trocas culturais ocorridas com os romanos e, posteriormente, com os cristãos, tornando as valquírias figuras mais coerentes com as tradições patriarcais, nas quais são representadas como belas donzelas, atendentes e esposas.

 

Baixo relevo representando uma valquíria com cornos de hidromel. Gotlândia, séculos VIII - IX

Hoje, o aspecto mais conhecido da valquíria seja, talvez, a sua principal faceta: aquelas que escolhem os mortos. O interesse da cultura pop na história germânica e escandinava resgatou a imagem das valquírias guerreiras e que estão sempre presentes nos campos de batalha para colher seus escolhidos. 

Por isso o arquétipo que decidimos evocar foi o de uma valquíria com as características bélicas presente nos poemas escandinavos como aquelas que escolhem os mortos. E também tentamos trazer o aspecto primitivo xamânico da profecia e dos ritos de morte e guerra. 

Grupo Asgard Tribal Co.

Com a participação do Clã Skjaldborg, grupo de combate viking, desenvolvemos uma narrativa em três atos, na qual as valquírias, dotadas do dom da profecia, dançam o destino dos guerreiros, e aparecem, assim como os corvos, rondando o campo de batalha, em um ritual de guerra e morte, que culmina com a escolha daqueles que serão levado para o Valhalla.

 

Release da coreografia:

As valquírias são poderosas entidades femininas presentes na mitologia nórdica. Filhas de Odin, estão ligadas à guerra, ao destino e à morte, pois são elas que tem na ponta de suas lanças a sina dos guerreiros, sendo as responsáveis por escolher os mortos que entrarão em Valhalla. Sua origem pode ser encontrada nos primitivos cultos escandinavos, como figuras femininas presentes em ritos sacrificiais e proféticos, que possuem o poder sobre o conhecimento do futuro e da morte, sobrevoando o campo de batalha, prontas para tomar a vida de seus escolhidos.

 

Você pode conferir a apresentação aqui: 

| Asgard Tribal |


Referências bibliográficas:

 BOYER, Régis. Mulheres viris. In: BRUNEL, Pierre (org). Dicionário de mitos literários. RJ: José Olympio, 1997b, pp. 744-746.

 DAVIDSON, Hilda Ellis. The lost beliefs of Northern Europe. London: Routledge, 2001.

 ________. Roles of the northern goddess. London: Routledge, 1998.

 ________. Myths and symbols in pagan Europe: early Scandinavian and celtic religions. Syracuse: Syracuse University Press, 1988.

 ________. Escandinávia. Lisboa: Editorial Verbo, 1987.

LANGER, Johnni. Símbolos religiosos dos vikings: guia iconográfico. História, imagem e narrativas 11, 2010b, pp. 1-28. Disponível em: Acesso em 05/01/2012.

LANGER, Johnni, NEIVA, Weber. Valquírias versus gigantas: modelos marciais femininos na mitologia escandinava. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano V, n. 13, Maio 2012.

OLIVEIRA, Ricardo Wagner Menezes de. Entre nornas e valquírias: o simbolismo do cisne na religiosidade nórdica pré-cristã. II Simpósio internacional da ABHR. História, gênero e religião: violências e direitos humanos. SC, 2016.

SIMEK, Rudolf. Dictionary of Northern Mythology. London: D.S. Brewer, 2007.

 


[1] Coletâneas do século XIII, encontradas na Islândia, que compilam histórias e mitos dos deuses e heróis nórdicos.

[2] Deusas da mitologia nórdica, responsáveis por controlar o destino de homens e deuses. São representadas por três mulheres: Urd, a guardiã do passado, Verdani, a guardiã do presente, e Skuld, a guardiã do futuro.

[3] Tradição oral presente na Noruega e Islândia entre o século 10 e 12 d.C.


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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Formação no Tribal] Em que Tempo estamos na Formação?

por Ana Clara Oliveira


"Gente é como nuvem, sempre se transforma"

Angel Vianna

                                              

 

Nos últimos tempos, tenho observado uma maior preocupação da nossa comunidade de dança quando o assunto é “formação”. Quantas vezes nos deparamos estudando com diversos profissionais e pensamos “Socorro, tenho que estudar mais isso” ou “Nossa! É muita coisa. Preciso saber esse assunto também?" Outras questões são recorrentes: “a minha formação é válida”? Ou “como posso me tornar professora”? Quem nunca entrou quase que em desespero ao saber dos diferentes conteúdos que a área da Dança pode abarcar no contexto da formação? Especialmente, nos momentos desafiantes do agora e com o elevado fluxo de informação, tenho notado que crescem as propostas para diversificados aprendizados e assim, entramos num estado enlouquecedor para acompanhar o funcionamento da formação em dança.

Assim, a coluna FORMAÇÃO pretende se dedicar aos assuntos que envolvem o contexto de ensino-aprendizagem no tribal, ou seja, a educação em dança. Temas como conteúdos, capacitações internacionais e nacionais, tendências pedagógicas, metodologias, métodos, avaliações, relação entre docente-discente, cursos acadêmicos e outras modalidades do ensinar/do aprender serão pontos fundamentais que serão tocados de modo acadêmico no alongamento da coluna. No presente texto, resolvi estrear com menos rigor acadêmico ou como diria Manuel Bandeira “quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples”.

No entanto, há que se considerar, inicialmente, que formação é um vocábulo complexo, que inspira diversos conceitos e significados. Para muitos, a formação refere-se ao âmbito educacional, ou seja, ao trabalho desenvolvido no campo de atuação institucional e organizações similares. Para outros, o termo formação relaciona-se ao modo como uma pessoa foi criada, nesse caso, aos aspectos da subjetividade. Na verdade, a multiplicidade do termo formação direciona para a tensa relação educação-segregação social, uma vez que a própria história de nosso sistema escolar mostra que o direito à educação atravessa “a histórica marginalização e segregação social e racial dos direitos sociais, econômicos, políticos, segregação tão persistente na cultura e na estrutura elitistas, conservadoras” (ARROYO, 2015, p. 18).

Visivelmente, estamos nos tempos de reconhecer que o direito à formação no contexto educacional está vinculado a negação e afirmação dos direitos humanos básicos. Em outras palavras, a segregação social e também racial impacta na demorada garantia dos direitos humanos e do direito à escola, à universidade e, no nosso contexto, aos espaços de formação em dança. Se olharmos para a comunidade brasileira de fusão tribal perceberemos se negros e outros “oprimidos” (FREIRE, 1987) chegam igualmente (quando alcançam) à tão sonhada formação em dança tribal ou estilo tribal de dança do ventre.

Paulo Freire, ao compreender os oprimidos como sujeitos de processos, agentes sociais e de formação humana, ressalta: “quem melhor que os oprimidos se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá melhor que eles os efeitos da opressão?” (FREIRE, 1987, p. 31). Para mim, é evidente que ao falar de formação/educação/pedagogia em dança é preciso reconhecer que os oprimidos compreendem a sociedade opressora e os efeitos da desumanização no cotidiano de suas vidas. Neste sentido, não seria uma função das capacitações e escolas de formação em tribal abarcar as resistências dos oprimidos e compreender suas experiências de opressão, sobretudo, do Estado? Ou deveríamos focalizar apenas no universo de técnicas estabelecidas e práticas cada vez mais eficientes e inovadoras do mercado? Por isso, intitulei o texto como: em que tempo estamos na formação?

No meu ponto de vista, acolher as reflexões e vivências do Outro, não é o mesmo que abandonar o aprendizado de técnicas. Cabe aqui, esse saber “todo o Ser Humano nasce com um Sol interno. É responsabilidade da comunidade Acender esse Sol para o nosso livre caminhar na Vida” (Filosofia Kindezi citada por Aza Njeri).

Se nos reconhecemos como profissionais ou alunos de tribal, precisamos problematizar os significados da formação. “Não nos desarmemos em tempos insatisfatórios. A injustiça social ainda precisa ser combatida. O direito à educação não vai melhorar sozinho” (ARROYO, 2015, p. 46)

E agora, o que nossa comunidade de dança entende sobre a palavra “formação”? Depois da leitura, qual imagem de “formação” você desenharia?

Vamos dialogar!

 

Referências

ARROYO, Miguel. O direito à educação e a nova segregação social e racial – Tempos insatisfatórios? Educação em Revista|Belo Horizonte|v.31|n.03|p. 15- 47 |Julho-Setembro, 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982015000300015&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 07 de jan. 2021.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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Formação no Tribal


Ana Clara Oliveira (Maceió-AL) é dançarina e pesquisadora do estilo Tribal de Dança do Ventre. Professora de Dança na Escola Técnica de Artes (UFAL). Doutoranda em Artes (UFMG) onde pesquisa a formação no Tribal. Mestrado em Dança (UFBA). Diretora da Zambak Cia de Dança Tribal ... Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>

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