por Thaisa Martins
Em nossa conversa de hoje partiremos de três perguntas que me instigam enquanto pesquisadora e que são fundamentais para a criação desta coluna: 1) O que queremos dizer com “campo da Dança”? 2) Por que essa reflexão é importante ? e 3) O que o Tribal tem haver com isso?
Campo
Já entrando de cabeça em nossa discussão mais teórica, é do conceito de campo, postulado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, que embasamos nossa discussão. No livro “Os usos sociais da ciência: Por uma sociologia clínica do campo científico", Bourdieu discute de forma muito simples, cheia de exemplos e de fácil compreensão o conceito de campo e outros assuntos conectados a ele. Por se tratar de uma transcrição da palestra dada pelo mesmo em uma conferência que aconteceu em Paris no mês de março de 1977, muitas vezes temos a sensação de estarmos em uma conversa.
Bourdieu (2004, p.20) define o campo como: "(...) o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas. A noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias.” Ou seja, campos são os espaços onde são produzidas formas de observar e se relacionar com o mundo. Pensando na produção científica, por exemplo, temos o campo da Biologia com suas leis, métodos e teorias que são diferentes em relação ao campo da Matemática.
Um ponto muito importante para a discussão de Bourdieu é em relação a autonomia dos campos, para ele (2004, p.22)“(...)quanto mais autônomo for um campo, maior será seu poder de refração e mais imposições externas serão transfiguradas.” ou seja, quanto mais autônomo um campo for, mais reconhecido e legitimado ele será. Esse é um dos problemas que a Dança, enquanto campo, está tentando resolver atualmente.
Não basta para uma disciplina a autodeclaração de campo, ela precisa ser reconhecida como tal por seus pares. Para isso, agentes e instituições precisam lutar por seu espaço. Questões como a regulamentação da classe profissional, formalização de ensino através de cursos universitários em todos os graus (graduação, mestrado e doutorado), sindicatos, órgãos reguladores, congressos, revistas especializadas e etc são peças fundamentais para que o campo se torne autônomo. Além disso, a produção de conhecimento é fundamental. Quando somos capazes de observar um forte desenvolvimento epistemológico e ontológico de um campo do conhecimento, podemos começar a investigar o mundo através de “suas lentes” ou paradigmas.
A Dança pode ser compreendida como um campo?
Como a ponta a pesquisadora Prof.a Dra Luciane Coccaro em sua tese de doutorado “Os que fazem e os que pensam a dança: estudo da tensão entre teoria e prática em quatro cursos de graduação em dança no Brasil” de 2017, a Dança é um campo em construção, pois sua autonomia e reconhecimento ainda está em processo. A autora se aprofunda nesta discussão de forma muito competente em seu terceiro capítulo e indicamos fortemente a leitura para uma discussão mais robusta.
Apesar deste posicionamento um tanto quanto desanimador, acredito que podemos sim assumir que o campo da Dança existe e cabe a nós, agentes inseridos no fazer da dança, defendê-lo e lutar para que sua autonomia seja cada vez mais alcançada e reconhecida. Como Bourdieu (2004, p.23) aponta, “Os agentes criam o espaço, e o espaço só existe (de alguma maneira) pelos agentes e pelas relações objetivas entre os agentes que aí se encontram”. Assim, a conscientização do papel de agente e a busca pelo protagonismo da Dança em nossas produções é peça fundamental para que esse cenário mude.
Mas o que significa colocar a Dança como protagonista? Significa deixar de reproduzir discursos de campos outros e nos apoiarmos na própria visão de mundo construída pelo campo da Dança, abandonando a comum prática de colocar a Dança com um mero objeto de estudo. Significa então, estudar o que a dança tem a dizer de sobre sí mesma. Isso não quer dizer que devemos deixar de lado o suporte de áreas como a Histórica, Biologia, Física e etc, mas sim, que devemos lutar para que trabalhemos como pares desses campos. Pessoalmente falando, a transdisciplinaridade tem sido meu lugar de busca de construção de conhecimento.
Entendo o fazer transdisciplinar como “referindo-se àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina” (NICOLESCU, 2008, p. 16). Ou seja, deixando bem claro os olhares das diferentes “lentes” (paradigmas) que os campos produzem e fazendo que sejam respeitadas e aproveitadas as metodologias e métodos de todas as áreas, estabelecendo uma sinergia entre os saberes, sem fracionamento metodológico ou hierarquização do conhecimento.
Acho importante salientar, mais uma vez, que a idéia aqui exposta não é de condenar as pessoas de outros campos que olham para dança, pelo contrário, esses trabalhos agregam muito às reflexões e amadurecimento do fazer artístico, mas intento chamar a atenção de que podemos e devemos construir conhecimento sem uma subjugação intelectual. Afinal, olhar para o mundo pela perspectiva do movimento artístico é uma forma que somente a dança pode construir e precisamos reconhecer isso.
Não adianta, enquanto pesquisadores da Dança almejarmos construir um trabalho de historiografia (por exemplo) pois não recebemos a mesma formação que os historiadores. Da mesma forma que não seremos capazes de construir um prédio fazendo aula de Economia Brasileira. Para tal, os pesquisadores se inserem nesses campos e estudam essas ferramentas para que, partindo da perspectiva do campo da Dança, possam construir algo cientificamente acurado.
Mas enquanto pesquisadores da Dança, temos todo o direito de pesquisar nossa história e, aprendendo mais sobre ela, levantar questões e avançar em nossas produções. Assim, o produto final de nossas investigações será diferente, e isso é ótimo. Seguindo o exemplo de forma bem simplificada, enquanto o historiador aplica seus métodos para investigar as produções artísticas da Dança e produzir um trabalho historiográfico, a Dança se alimenta da produção historiográfica para produzir reflexões e produções artísticas. Tudo isso está conectado com o que Bourdieu chama de capital científico.
Bourdieu divide o capital científico em duas espécies, a primeira que está relacionada a um poder político, que está ligado à ocupação de posições em instituições científicas, ou seja, a ideia de que um acadêmico da dança tem mais legitimidade no discurso do que um praticante. O outro tipo de capital está conectado ao prestígio pessoal, que tem haver com o reconhecimento, ou seja, falar de Dança numa perspectiva de um campo mais prestigiado é muito mais fácil e pode gerar muito mais reconhecimento do que dentro do próprio campo.
A pergunta que fica é, que tipo de capital científico estamos produzindo? Como comenta Sylvie Fortin e Pierre Gosselin (2014), estamos produzindo pesquisa em arte, sobre arte ou para a arte? Acredito que a resposta nos direciona para o tipo de capital que estamos produzindo e os impactos para os campos envolvidos. A escolha consciente é o que buscamos apontar neste momento.
O que o Tribal tem haver com essa discussão?
O Tribal, enquanto manifestação artística, está inserido no “ringue de disputas” dentro do campo da Dança. Assim, a discussão afeta profundamente o fazer da modalidade. Desde questões como legitimação profissional, afinal se a Dança é reconhecida como um campo, seus profissionais passam a ter mais legitimidade política na reivindicação por direitos trabalhistas, até em relação ao aprofundamento teórico do fazer de sua dança, com mais oportunidades de aprofundamento e continuidade de estudo (seja pela via universitária ou não).
Quando observamos seus agentes (dançarinas profissionais ou não), buscando o estudo formal, desenvolvendo e aplicando ferramentas próprias do campo, interessados em se capacitar e questionar o status político atual que a modalidade se encontra é um importante movimento para a autonomia do campo da Dança com um todo. Fazer as pessoas compreenderem que a Dança é muito mais do que o Balé, e que por isso precisa de um olhar mais especializado e complexificado para compreendê-la é um grande avanço para o campo. Ao mesmo tempo em que, quanto mais autônomo e reconhecido o campo da dança se torna, mais fortalecido ficará o fazer das modalidades e assim, novas disputas de campo se instituem. Tudo está visceralmente imbricado.
Outro ponto que acredito ser importante dessa discussão para o Tribal é o entendimento da importância do amadurecimento teórico para o fazer artístico. O que, na minha percepção, podemos chamar de uma guinada epistemológica que o campo da Dança tem passado desde a década de 60 aqui no Brasil, e que o Tribal se inseriu bem recentemente com o aumento de pesquisadores inseridos nas universidades investigando a modalidade (seja na Dança ou não). Sinto que ainda somos “reféns” de um seleto grupo de pesquisadores, geralmente internacionais (como Donna Mejia, apenas para citar um nome influente contemporaneamente) e que só nos livraremos dessa colonização intelectual limitadora quando formos capazes de pensar por nós mesmas, de maneira mais aprofundada e instrumentalizada para concordar ou não com o que é postulado de maneira consciente. A situação atual, acredito, acarreta em um potente enfraquecimento da modalidade.
Conclusão
No presente artigo, buscamos discutir o conceito de campo de acordo com o postulado por Pierre Bourdieu e apontamos para a importância de sua análise para o campo da Dança como um todo. Intentamos ainda, evidenciar o papel do Tribal nesta disputa.
Gostaria de concluir nossa conversa trazendo minha posição política pessoal em relação a este assunto para a reflexão. Enquanto não nos compreendermos como agentes do campo da Dança, e portanto responsáveis por sua autonomia, enquanto desprezarmos o aprofundamento do estudo e acompanhamento da produção de conhecimento do campo (teorias próprias do fazer artístico e do movimento) estaremos condenadas ao papel de objeto de análise para os demais campos e seus agentes, que terão muito sucesso em nos dizer o que devemos ou não fazer com a nossa dança.
Sigamos!!
Referência Bibliográfica:
COCCARO, Luciane Moreau, Os que fazem e os que pensam a dança: estudo da tensão entre teoria e prática em quatro cursos de graduação em Dança no Brasil, Tese (Doutorado em Sociologia ), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017
FORTIN, S.; GOSSELIN, P. Considerações metodológicas para a pesquisa em arte no meio acadêmico. ARJ – Art Research Journal / Revista de Pesquisa em Artes, v. 1, n. 1, p. 1-17, 4 maio 2014.
NICOLESCU, B. O Manifesto da Transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 2008
BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: UNESP, 2004
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Campo em Cena
Thaisa Martins (Rio de Janeiro-RJ) é g
raduada em Teoria da Dança (UFRJ) e mestranda em Arqueologia (UFRJ) onde pesquisa processos de reconstrução de dança na Índia antiga. É sócia do Medusa Tribal Studio, estúdio de dança dedicado ao Tribal Fusion, suas derivações e origens no RJ, junto com a dançarina e fisioterapeuta Maya Felipe. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>