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[Dançando Narrativas] Memento Mori: a potência artística da mortalidade.

 por Keila Fernandes

Novembro é o mês no qual guardamos o feriado de finados. Apesar de ser um feriado de tradição cristã no nosso país, datas como essa existem desde a antiguidade estão presentes em calendários de diversas culturas do mundo inteiro.


A morte sempre intrigou os seres humanos, e as dúvidas sobre o que acontecia depois do corpo morrer é uma das explicações para a origem dos primeiros enterramentos.

Diferente dos outros hominídeos, Sapiens e Neandertais compartilhavam o costume de enterrar seus mortos. Essa preocupação com os corpos, segundo os estudiosos, indica a compreensão do processo de morte, bem como as primeiras reflexões sobre o que poderia vir depois.

Encontramos nas narrativas mitológicas de diversas culturas histórias sobre a morte, o além, os submundos e as divindades que guiam e julgam as almas. Além de datas comemorativas e relatos de festivais para celebrar e recordar aqueles que já haviam partido.

Imagem de Joe Velasques, em Pixabay

A morte sempre foi parte da vida. Muitas culturas ainda a enxergam como algo natural, só mais uma etapa do movimento cíclico da natureza de constante morte e renascimento.

Em um cenário tão caótico e sombrio como o que temos vivido desde o início da pandemia, a ideia da morte se faz presente com maior intensidade no nosso dia a dia. Não que antes da pandemia não fizesse parte do cotidiano de milhões de pessoas pelo mundo. Mas esse cenário furou muitas bolhas e nos colocou cara a cara com a nossa mortalidade, com a nossa finitude e fragilidade da vida.

A morte é um tema espinhoso e tabu na nossa cultura. Vemos como algo ruim, a ser temido, e por isso é um assunto  pouco discutido em espaços públicos, e até mesmo dentro dos lares (salvo em ocasiões nas quais famílias perdem ou estão prestes a perder entes queridos). Assim, não estamos preparados para aceitar a fatalidade da vida: as pessoas a quem amamos e nós, todos vamos morrer um dia.

Lembrando que, durante esse período, muitas pessoas foram tiradas de nós muito cedo. Milhares de pessoas tiveram sua jornada encurtada por irresponsabilidade, falta de empatia e incompetência para lidar com um cenário pandêmico. E quando falo nesse texto sobre compreendermos e falarmos sobre a morte, não estou dizendo que essas mortes evitáveis devem ser banalizadas e normalizadas. Por isso, mais do que nunca, devemos lembrar dessas vidas ceifadas de maneira tão repentina.

O Dark Fusion é um espaço no qual sentimentos incômodos são expressados por meio da nossa visão artística. A dança pode ser um espaço seguro no qual é possível encarar as dores e dúvidas geradas pela perda ou pelo medo da perda.

Morte: O Sentido da Vida, de Neil Gaiman

Em 2017, o Underworld Fusion Fest teve a Morte como tema, trazendo para os palcos a visão de diferentes artistas sobre o assunto.

A Morte foi abordada a partir da perspectiva mitológica, psicológica, filosófica, religiosa, cultural e ocultista. No palco ela foi celebrada como esse momento obscuro, cheio de incertezas e tristezas, mas inevitável e com o qual devemos sempre conversar.

Expressar nossas tristeza, raiva, desespero e aceitação por meio da dança é legítimo, e pode nos ajudar a lidar com momentos difíceis.

Convido então vocês a assistirem as apresentações, todas disponíveis no youtube.

Link: 3ª Edição do Underworld Fusion Fest | 21 & 22 de Outubro de 2017


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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Dançando Narrativas] Quem tem medo do Submundo?

por Keila Fernandes


O submundo, mundo inferior, ou ainda mundo dos mortos, está presente na mitologia de várias culturas, e para cada uma ele tem seu significado e importância para o funcionamento da vida.

Na nossa cultura ocidental cristã, é associado ao inferno, e o termo carrega um  significado pejorativo, como algo ruim a ser temido.


Mas quando olhamos para a mitologia e suas interpretações diversas, começamos a compreender melhor que esse lugar obscuro é temido por ser misterioso e desconhecido, pois não está no domínio dos vivos.


O submundo é, sim, o lar dos mortos.


Mas isso não é necessariamente ruim.


Afinal, ritos funerários sempre indicaram preocupação com o que ocorre com as almas após a morte. Os mortos precisam de um lugar para onde ir e descansar.


No mito sumério da descida de Inanna ao submundo, este é governado pela deusa Ereshkigal, que tem aos seu lado os Anunnaki, os deuses da justiça. O reino de Ereshkigal é para onde vão os mortos que, tendo cumprido suas obrigações com os deuses, mantém na morte o mesmo status que possuíam em vida. 


Segundo fontes acadianas, é no neste mundo onde vivem também entidades obscuras, como as deidades da morte e do mal.


Inanna desce ao submundo para visitar a irmã em luto pelo marido (embora tal razão ainda seja obscura), e é forçada a deixar partes de suas vestes e jóias em cada um dos sete portais até chegar nua e curvada ao trono de Ereshkigal. Segundo o mito, o mundo dos mortos é um lugar do qual ninguém poderia voltar, assim Inanna é castigada pela irmã que a mata. Com a intercessão de sua criada Ninshubur, Ianna é ajudada por Enki, deus da sabedoria. Ele envia dois seres para dar a ela o alimento e a água da vida e revivê-la.


Porém as leis do mundo do mortos são divinas e não podem ser desafiadas, e para que Inanna ascenda e retome seu lugar, ela precisa deixar em seu lugar alguém para substituí-la, e o escolhido é seu esposo, Dumuzi, que não guardou luto por ela.


“A Rainha da Noite”, relevo babilônico, 1800 - 175 a.C. Possível representação de Ereshkigal. As asas fechadas e os chifres indicam se tratar de uma divindade. Os instrumentos de medida, indicam a ligação com a justiça.


O submundo egípcio era o reino de Osíris e também a morada dos mortos. 

Na mitologia egípcia, a cada pôr do sol, Rá morria e mergulhava no submundo. Então ele precisa atravessá-lo em seu barco e, com a ajuda do deus Seth (deus do deserto e do caos), ele enfrentava a serpente Apep, que desejava destruir o mundo dos vivos. E assim eram as noites para os egípcios. Cada amanhecer significava o ressurgir e a vitória de Rá sobre Apep e seu retorno da jornada ao mundo dos mortos.


Representação do Tribunal de Osíris retirada o Livro dos Mortos (1580 - 1560 a.C.). A cena  representa o julgamento da alma, no qual o coração era pesado por Anúbis, deus da mumificação, e o julgamento era presenciado por Maat, deusa da justiça, e Toth, deus do conhecimento e escriba do mundo dos mortos.



Dentro da cultura cristã o submundo é o Inferno, lugar para onde vão as almas condenadas dos pecadores para sofrerem tormentos eternos. Também é o lar dos anjos caídos que se rebelaram contra Deus e foram encerrados no abismo. No entanto, essa ideia de Inferno começa a ser construída apenas na Idade Média, visto que no texto bíblico não há referências a um local com esse nome ou com a estrutura tão conhecida de círculos e torturas. Tal visão se cristalizou, em boa parte, por causa da obra de Dante Alighieri, A Divina Comédia.


Ilustração de Gustave Doré representando Dante Alighieri e Virgílio em sua passagem pelo sétimo círculo do Inferno (1861 -1868).


Obscuro e desconhecido, o mundo inferior coloca medo em humanos e deuses, mas aqueles que se atrevem a se aventurar por ele, saem transformados e dotados de mais conhecimento.

A justiça também é um conceito muito presente no mundo inferior. Seja por meio da punição aos pecadores, seja pelo tribunal dos grandes deuses, é no mundo dos mortos onde todas as ações são julgadas.


Além disso, é o lugar onde habitam divindades, ideias e sentimentos ocultos, considerados perigosos e temidos por muitos. Entidades ligadas à morte, à dor, ao destino, à magia, aos segredos e à escuridão. Seres necessários para a existência e equilíbrio do mundo, mas que nem todos estão dispostos a compreender ou celebrar.


Trazendo para nosso contexto, é comum que a imagem em nossa mente esteja associada a coisas ruins, ilegais e escondidas. Como o submundo do crime ou o próprio inferno, por exemplo.


No entanto, o conceito de submundo, em sua origem não é pejorativo: 


Submundo = o mundo que está embaixo do “nosso”  mundo, do mundo dos vivos; associado ao mundo dos mortos, lar das almas condenadas, ao inferno (do latim infernum = as profundezas da terra, mundo inferior).


Nesse sentido, falamos de submundo para expressar um espaço  onde se escondem coisas obscuras e misteriosas, consideradas inapropriadas e assustadoras demais para o  “mundo real”.


Underworld Fusion Dance Co. Coreografia "Forças Primordiais”, Underworld Fusion Fest, 2018. Foto: Carla Lorentz


O nome da nossa companhia, Underworld (Submundo), veio do nome do festival Underworld Fusion Fest, um espaço para o Dark Fusion e outras fusões experimentais. Um espaço para valorizar a liberdade artística dos bailarinos e bailarinas, um lugar seguro para se expressar o horror, o macabro, o alternativo, o feio e os sentimentos mais profundos que compõem a nossa arte.


Quando assumimos esse nome para o grupo, quisemos trazer conosco essa carga, pois para nós, o submundo é onde nos encontramos, é onde o nosso Dark Fusion se encontra e onde muitas expressões artísticas se encontram também.


Quando nos atrevemos a trazer aos palcos temas incômodos ou considerados pesados. Quando damos vida às histórias e personagens que fogem da lógica e da narrativa cristã-ocidental, quando questionamos os padrões impostos, quando escancaramos, por meio da dança, que nem só de sentimentos bonitos vivem as pessoas, abrimos as portas do mundo inferior.


E aqui peço licença para retomar as jornadas de Inanna, Rá e Dante e as tornar parte das nossas. Descer ao submundo é sofrido, porém faz parte do nosso crescimento. Fazer essa jornada pelos nossos caminhos mais sombrios nos coloca em contato com muitos segredos e conhecimento, e nos faz emergir transformados.


O submundo está de portas abertas. E nós te convidamos a entrar.

 


Referências



Egyptian  Mythology: A Concise Guide to the Ancient Gods and Beliefs of Egyptian Mythology. Hourly History. 2016


KRAMER, Samuel Noah. Os Sumérios: Sua História, Cultura e Caráter.Portugal, Livraria Bertrand, 1977.


KRAMER, Samuel Noah, WOLKSTEIN, Diane. Inanna, Queen of Heaven and Earth: Her Stories and Hymns from Sumer. New York, Harper and Row Publishers, 1983.


PRITCHARD, James B. Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. Third Edition With Suplement. Princeton University Press, 1969.


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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Dançando Narrativas] Lenda, Mito e Folclore: é tudo a mesma coisa?

por Keila Fernandes

Não, não é.


Já conversamos aqui sobre mitologia e personagens mitológicos e como eles estão presentes na nossa dança. Para além deles, personagens de lendas e do folclore também costumam ocupar um lugar especial do gosto de muitas bailarinas e bailarinos.


Contudo, os conceitos de lenda, mito e folclore, por serem complexos, podem acabar se misturando e se confundindo, e nós podemos cometer equívocos ao atribuir a um personagem ou narrativa a ideia de folclore ou lenda, quando este é parte de uma mitologia.


Pensando nisso, trago aqui, de forma simplificada, os significados destes conceitos para quando quisermos usá-los em nossa dança.


Ao contrário do que se pensa (e foi amplamente difundido), mito não é sinônimo de mentira. Os mitos são narrativas sagradas (atenção a essa palavra) que explicam o mundo e a vida. Eles nos colocam em contato com a forma como outros povos enxergam a realidade e entendem a natureza. E a mitologia, o conjunto e também o estudo dos mitos, ela está presente nas narrativas cristãs, na espiritualidade indígena e nas religiões de matriz africana.


O folclore é um conceito complexo, e também é um campo de estudo. A palavra foi cunhada por William John Thoms, em 1846, a partir dos termos anglo-saxões folk (povo) e lore (sabedoria/conhecimento) e ainda gera muitos debates e controvérsias. Mas ajuda se pensarmos na etimologia da palavra e nos lembrarmos que estamos falando de sabedoria e conhecimento popular.


O folclore abrange uma variedade cultural grande. Ele pode ser pensado como o conjunto de crenças, contos, causos, lendas, músicas, danças, festas, histórias, costumes, tradições, comidas, práticas cotidianas e outras expressões populares.


Boi Caprichoso e Boi Garantido: Festival Folclórico de Parintins.

As lendas são parte do folclore. A origem do termo vem do latim medieval legenda, e significa “aquilo que deve ser lido”. As lendas, inicialmente, contavam as histórias dos santos. E manteve esse sentido no Brasil do século XIX.

Com o tempo, o significado do termo foi se transformando. Hoje, quando falamos em lendas, estamos falando de narrativas fantásticas de origem popular, geralmente transmitidas de maneira oral (e também podem ser registradas de forma escrita). As lendas narram coisas que ocorreram com alguém em um local e tempo específico. Seus acontecimentos podem ser reais, ou não, assim como podem misturar ficção e realidade. 


Contudo, por mais que sejam conceitos diferentes e possam ser estudados e trabalhados separadamente, às vezes um perpassa o outro. A cultura está em constante movimento, e essas expressões acabam se encontrando e se relacionando em um cruzamento cultural onde podemos enxergar a continuidade das narrativas mitológicas e/ou folclóricas.


Não, o mito não é folclore. 


Como já foi dito, ele representa a realidade e a sacralidade para seus respectivos povos. E as narrativas mitológicas são tão poderosas que, mesmo sendo histórias muito antigas, sobreviveram até hoje, seja na crença, no imaginário ou na cultura pop.


A força e a permanência dos mitos pode ser verificada no folclore e nas lendas que bebem dele. Por exemplo: a figura das fadas. Originárias da mitologia dos povos celtas, após o domínio romano e a cristianização, elas permaneceram em lendas e fazem parte do imaginário popular, presentes em lendas e nos famosos contos de fadas, inicialmente narrativas populares que tinham o intuito de ensinar algo, e   foram registradas posteriormente, e hoje chegam até nós na forma de filmes e animações.


"3 Who Stand" de Brian Froud (2011/2012)/Sininho, de Peter Pan. - Disney (1953)

Ou então  o Curupira, entidade protetora das florestas que tem sua origem na mitologia Tupi e hoje aparece nas narrativas folclóricas. Nesse caso devemos nos atentar para o contexto de colonização do nosso país. Curupira foi descrito pelo padre jesuíta José de Anchieta como um demônio que atacava pessoas nas florestas e para quem os indígenas deixavam oferendas para evitar tais ataques. Assim, essa entidade teve sua imagem deturpada pela ótica cristã, e foi se transformando dentro do imaginário popular, tendo suas origens, por muitas vezes, negligenciadas e ignoradas.


Por isso, compreender que, apesar de possuírem uma ligação, mito e folclore não são a mesma coisa, é muito importante pois, como já dito anteriormente, a mitologia carrega a identidade cultural e as crenças de um povo, e embora o folclore seja o conhecimento popular, é necessário cuidado para não enxergarmos ambos de maneira equivocada, e para  trabalhá-los de forma séria.


Principalmente no que diz respeito à espiritualidades e cosmogonias indígenas, que, com o contato com os colonizadores, acabaram por penetrar no imaginário popular, e com o tempo foi sendo apagada e infantilizada em obras que tiram das narrativas indígenas o seu caráter sagrado e sua importância para seus respectivos povos.


Então, mesmo estando presentes em narrativas folclóricas, devemos sempre lembrar de que são parte de mitologias (pois estamos falando de povos diversos, com cosmogonias diversas) e um sagrado importante.


Compreender o folclore, é compreender nossa história. É entender que a cultura é mutável e adaptável. É entender o sincretismo religioso e cultural, é nos aproximar das nossas origens, da nossa linguagem e entender a diversidade enorme de nosso país. E assim, quando levarmos ao palco traços de nossa cultura, fazer isso de maneira consciente e respeitosa, valorizando as fontes das quais bebemos.



Referências bibliográficas:



BENJAMIN, Roberto. O Conceito de Folclore. In.: UNICAMP: Projeto Folclore. Disponível em <https://www.unicamp.br/folclore/Material/extra_conceito.pdf>


CASEMIRO, Sandra Ramos. A Lenda da Iara: nacionalismo literário e folclore. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. 2012.


COSTA, William. Entendendo o Folclore. In: Academia.Edu. Disponível <https://www.academia.edu/33365609>


MUNDURUKU, Daniel. Sobre mitologias e outras narrativas. YouTube. 16/03/2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9h6oq3Gc58M>


Pensando perspectivas decoloniais sobre o folclore brasileiro. In: Nonada. Disponível: <http://www.nonada.com.br/2021/02/folclore-brasileiro-decolonial/>


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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Dançando Narrativas] (Re)Criando Deuses: A pluralidade dos seres mitológicos aplicada à dança.

 por Keila Fernandes

Deuses, entidades, heróis e criaturas presentes nas variadas mitologias ou nos folclores, não são figuras estáticas. 

Todos possuem características centrais, no entanto, apresentam uma diversidade de traços que podem variar de acordo com o período e contexto dos quais fazem parte.

Portanto não devemos tratá-los como algo absoluto, ignorando suas variações, pois eles são reflexos de como determinada cultura vê e vivencia o mundo.

É importante entender o contexto, os traços culturais, políticos, históricos que envolvem os seres mitológicos e alinhar isso com a sua intenção na hora de representá-los.

Não é simples, mas a dança é uma forma de arte, e como arte ela demanda estudo, compreensão e sensibilidade. Nossa liberdade artística exige essa responsabilidade de conhecer os elementos da dança e os que a perpassam, para sempre mostrar nossa dança de forma coesa e séria. Sem desrespeitar nosso trabalho (e, consequentemente o trabalhos de outras bailarinas e bailarinos) e sem desrespeitar as histórias e manifestações de culturas diferentes.

Assim, compreendendo a profundidade das narrativas e personagens míticos e folclóricos, podemos trazê-las para nossos movimentos e expressividade.

Loki, o deus nórdico da trapaça e do caos, também associado ao fogo, é uma figura plural. Filho de gigantes e adotado pelos aesir, é uma criatura que não se encaixa em seu ambiente, e difere muito dos conceitos de honra e força apreciados pelos nórdicos e representados pelos deuses.

Apesar de ser considerado um trapaceiro e ter sido transformado em vilão pela cultura pop, Loki é muito inteligente e aparece em várias histórias ao lado de Thor. Em vários momentos é sua sagacidade que salva a pele dos dois. Além disso, é uma figura ambígua no gênero e no sexo, tendo por diversas vezes assumido um papel considerado feminino sem nenhuma vergonha, além de ter sido mãe de Sleipnir, o cavalo de Odin.

Loki com uma rede de pesca em em manuscrito islandês (1760)

Medusa é uma figura comumente vista de maneira bastante rasa. Muitas vezes é retratada como uma vilã cruel (geralmente bastante sexualizada) que transforma homens em pedra, pois se tornou um ser cheio de rancor.

Há uma relutância em explanar os motivos desse rancor. Medusa era uma bela sacerdotisa de Atena, que resistiu às investidas Poseidon e por ele foi violentada. Por conta disso, foi amaldiçoada pela deusa a quem prestava culto, sendo transformada em uma criatura que odeia homens e os petrifica com o olhar, incapaz de amar e ser amada, para acabar decapitada por Perseu. 


Medusa é uma figura trágica, um dos mais antigos casos de como funciona a cultura do estupro. E sua imagem, mesmo sendo originada de um mito nefasto, foi usada como figura protetiva em casas e templos, na forma de esculturas e mosaicos.


Mosaico de cabeça de Medusa: Museu Arqueológico de Palência, Espanha.


Outra figura feminina tratada de forma bastante estereotipada é Lilith, cuja origem se encontra em textos sumérios nos quais ela é referida como um dos sete demônios filhos do deus Anu.

Lilith era uma entidade perigosa, associada à morte de bebês e de mulheres em trabalho de parto. Ela também causava sonhos eróticos nos homens para roubar seu sêmen e dar à luz monstros.


Por conta do cativeiro na Babilônia, os hebreus absorveram muito da cultura mesopotâmica, e Lilith aparece na tradição oral judaica como a primeira esposa de Adão que, se recusando ser submissa à ele, foi expulsa e amaldiçoada por Deus a ser a mãe dos demônios.


Lilith é uma entidade complexa que se modificou com o tempo e foi se tornando algo muito diferente de sua origem. Talvez por isso existam muitos equívocos em suas representações que, atualmente, evidenciam o aspecto sensual e sexualizado, suavizando, ou até mesmo apagando, a face do feminino monstruoso.


Lilith representada presa por correntes em amuleto hebreu com os dizeres: “prenda Lilith com correntes”, século 19/18 AEC.

A deusa suméria Inanna, conhecida por ser a deusa do amor e da guerra possui uma multiplicidade de características que vão dos domínios bélicos à proteção das prostitutas. A mesma deusa cultuada pelos reis a quem prometia limpar o chão com a barba de seus inimigos, também era cultuada pelas mulheres virgens em busca um bom casamento, pelas mulheres casadas, que desejavam satisfação sexual e fertilidade e pelas prostitutas, à quem era comparada em diversos poemas, por possuir pleno domínio de sua sexualidade e buscar o prazer pelo prazer.  

Inanna com um guerreiro, apresentando prisioneiros ao rei.

Estes são apenas alguns exemplos de como os seres míticos possuem camadas que podem ser exploradas e trazidas para a dança, como ferramentas para a criatividade.

Os mitos nos trazem personagens e narrativas cheias de significado e ideais, nas quais os deuses e heróis são aquilo que os humanos almejam ser. Possuem virtudes e histórias destacando seus valores e funcionam como um fio condutor para o comportamento humano.

No entanto, os deuses foram pensados à existência pelos humanos, e assim apresentam características boas e ruins, tão comuns em nós.

Somos invejosos, ciumentos, inteligentes, belicosos, sensuais, sexualmente diversos, pois assim o são os deuses. E como seríamos seus criadores e também suas criaturas, compartilhamos com eles tais virtudes e defeitos.

Quando dançamos essas entidades, recontamos suas histórias que, de uma forma ou de outra, estão entrelaçadas com a nossa. Por meio de nossa arte, trazemos à vida deuses, monstros e heróis, tão plurais quanto nós mesmos.


Referências Bibliográficas:

DUPLA, Simone Aparecida. Quando os deuses copulavam: a sexualidade da deusa Inanna no Antigo Oriente Próximo. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 21, V. 8, N. 2 (maio/agosto 2016) Disponível em: <https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/article/view/198461502128>

KINRICH, Lauren, "Demon at the Doorstep: Lilith as a Reflection of Anxieties and Desires in Ancient, Rabbinic, and Medieval Jewish Sexuality" (2011). Pomona Senior Theses. 4. https://scholarship.claremont.edu/pomona_theses/4 Disponível em: <https://scholarship.claremont.edu/pomona_theses/4/>

MILES, Helen. A collection of ancient mosaic Medusa heads. Helen Miles, 2016.

Disponível em: <https://helenmilesmosaics.org/ancient-mosaics-general/mosaic-medusa-heads/>

PERRUSI, Martha Solange. O lugar da pluralidade de deuses em oposição ao monoteísmo a partir de Nietzsche. Ágora Filosófica

Universidade Católica de Pernambuco. Cv. 1, n. 1 (2008) Disponível em: <http://www.unicap.br/ojs/index.php/agora/article/view/69>

PIRES, Hélio. Sexualidade e Divindade na Mitologia Nórdica SCANDIA: JOURNAL OF MEDIEVAL NORSE STUDIES N. 2, 2019 (ISSN: 2595-9107) Disponível em <https://periodicos.ufpb.br/index.php/scandia/article/view/47788>

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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Dançando Narrativas] A Dança dos Orixás

por Keila Fernandes

Hoje eu gostaria de começar fazendo uma pergunta: quando falamos em mitologia, quais são as primeiras imagens que vem à sua cabeça?


É muito comum pensarmos nos deuses greco-romanos, ou nórdicos, com lendas e aventuras muito difundidas no ocidente. Figuras presentes em filmes, livros e jogos.


Sabemos quem é Zeus, Hércules, Afrodite, Odin, Thor e as valquírias.


No entanto, por mais que esses personagens e suas histórias sejam interessantes, eles possuem certa distância de nossa realidade latinoamericana. Não que os mitos de outros países não tenham nada a nos dizer, muito pelo contrário. Mas as vezes focamos muito em culturas distantes, buscando coisas que podemos encontrar bem aqui, no nosso país.


Nas religiões de matriz africana presentes no Brasil, também encontramos uma mitologia complexa e rica na qual encontramos um panteão diverso, envolto por histórias de amor, conflitos, guerras e ensinamentos.


E por mitologia, entende-se o conjunto de narrativas sagradas presente em determinada cultura para explicar o mundo e a realidade (dá uma olhada nesse texto aqui, onde falo sobre isso).


Muitas vezes, nós não enxergamos os Orixás dos cultos afro brasileiros como parte de uma mitologia. Por conta do nosso contexto racista e colonial, esses mitos são considerados menores, sem a mesma importância que as narrativas sobre os deuses egípcios e gregos, por exemplo, com os quais temos contatos nas salas de aula.


Os Orixás são divindades antigas que possuem domínio sobre a natureza e são dela representações. Seus mitos trazem suas histórias, ensinamentos e formas de compreender a realidade.


No entanto, quando falamos deles e sua dança, não estamos falando apenas de uma mitologia antiga, mas também da religião e da cultura trazida pelos povos africanos escravizados,  e que sobreviveu aos séculos de opressão e violência e hoje fez parte da pluralidade religiosa brasileira.


Por isso, devemos ter muito cuidado e sensibilidade ao abordar tal assunto em nossa dança. 

E sim, é diferente de quando lidamos com mitologia nórdica, por exemplo, por conta do nosso contexto histórico. 


Durante três séculos o Brasil escravizou e explorou milhões de pessoas vindas de diferentes regiões da África.


Para consolidar a subjugação dessas pessoas, elas foram separadas de seus grupos étnicos, proibidas de falar seu idioma e viver suas crenças e espiritualidades. Foram forçadas a se converter ao cristianismo, ganharam nomes cristãos e não podiam ensinar seus costumes e tradições para seus filhos.


A permanência da cultura africana foi, e continua sendo, um ato de resistência do povo negro no Brasil. Por isso, quando abordamos traços dessas culturas na arte, devemos nos informar e entender que  a chamada mitologia africana é a base da religião e da espiritualidade de muitas pessoas. Espiritualidade essa que vem sendo demonizada e perseguida por séculos.

E por mais que as religiões afrobrasileiras tenham adeptos de diversas etnias, a sua origem é negra, e por isso foi estigmatizada e ainda é alvo de de ataques e discriminação de cunho racista.


Xangô, Iemanjá e Iansã, Orixás populares no Brasil. Arte de: LAMBUJA - http://lambuja.com.br/


As religiões de matriz africana possuem uma ligação muito forte com a dança e a música. Isso porque os mitos e narrativas dos povos escravizados sempre foram passados de forma oral, por meio de histórias e canções.


A dança é a maneira com a qual os Orixás se comunicam com os humanos, narrando suas trajetórias e ensinamentos por meio de seus movimentos.


Mas é possível trabalhar a dança dos Orixás no Tribal Fusion? Como trazer a representação de um Orixá de maneira coerente e respeitosa?


Como sempre, a nossa boa e velha pesquisa vai ajudar bastante na criação de uma coreografia baseada na mitologia dos povos africanos.


Além disso, é importante buscar referências históricas, na dança afro, em bailarinos que trabalham essa temática, em trabalhos antropológicos e na própria mitologia.


Augusto Omolú foi um importante bailarino, coreógrafo e pesquisador da Dança dos Orixás, e a trazia para o seu trabalho artístico, estudando os movimentos de cada divindade e significados, inspirando-se neles e combinando-os com a sua dança e levando-os para o palco.


“O Odin [Teatret], os atores, por exemplo, criam e improvisam sempre buscando algum elemento, eu tenho os orixás. Se eu vou criar uma partitura para um personagem, eu posso utilizar um ou dois orixás e a partir de então improvisar com os elementos. Eu procuro conversar a energia de cada orixá, improvisei [demonstra o movimento] não mostro o Ogum, mas a energia de Ogum [sinaliza com as mãos indicando o movimento da espada de Ogum].” (Augusto Omolú)


Mercedes Baptista, foi a primeira bailarina negra a integrar o corpo de baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ela elaborou um repertório próprio de dança afro-brasileira com base nas observações dos movimentos dos Orixás nos terreiros.


Ela apontava a importância de dançar como bailarina e não como Orixá. Criar outros movimentos e não emular o que o Orixá faz no terreiro.


A bailarina Mercedes Baptista, em novembro de 1955. Arquivo Nacional. E o bailarino e coreógrafo Augusto Omolú, em sua performance Oro de Otelo.


As danças das religiões de matriz africana contam histórias, e os movimentos dos Orixás falam muito sobre suas características e os elementos aos quais estão ligados. E conhecendo esses elementos e seus significados é possível criar uma coreografia inspirada em um Orixá que funcione sem ser caricata ou desrespeitosa.


E sempre é necessário questionarmos os motivos pelos quais estamos dançando determinada divindade. Quais traços queremos ressaltar, quais movimentos usaremos para destacá-los, qual o tipo de música combina com o personagens e as características trabalhadas. 


Para escrever esse texto eu conversei com a Monni Ferreira, que foi quem me sugeriu falar sobre esse tema, além de ter contribuído com dicas e seu parecer sobre o texto e contribuindo com a sua visão sobre a Dança dos Orixás e como é importante entender a pluralidade de características dessas divindades.


“Quando pensamos na dança afro e consequentemente nas danças dos orixás é preciso ter em mente que muitas das movimentações características foram construídas dentro dos terreiros de candomblé para representar as divindades, os Orixás. Por isso é tão importante entender a origem e os significados antes de tentar reproduzir as movimentações corporais apenas como uma repetição de movimentos. Quando pensamos em Iansã, uma das mais conhecidas divindades da cultura afro-brasileira, automaticamente vem na nossa mente uma mulher vestida de vermelho, rodando, gritando e girando sua saia de roda com as mãos na cintura. Esta é a caracterização mais conhecida de Iansã, também chamada de Oiá e que se difere da que conhecemos quando ela está em sua qualidade de Igbalé, a rainha dos espíritos dos mortos. Oiá Igbalé veste branco e é responsável por conduzir os eguns na hora do desencarne, indicando o caminho de cada alma desprendida de seu corpo.


Outra divindade muito conhecida e cultuada por nós é Iemanjá, popularmente caracterizada como uma mulher branca, jovem, magra, de longos cabelos, muito calma e sempre usando roupas nas cores azul e prata. Ocorre que Iemanjá é a mãe dos orixás e como mãe ela defende e protege os seus filhos. Na qualidade de Sabá, é a Iemanjá mais velha, sábia, rabugenta, voluntariosa, fiadeira de algodão e capaz de grandes amarrações. Orixá das águas sagradas, a Grande Mãe, Iemanjá Sabá costuma usar branco e prata para simbolizar a sua energia que vem das espumas brancas do mar.” (Monni Ferreira)


Então, como tenho falado nos textos anteriores, a pesquisa e a busca por referências são as maiores aliadas na hora de se representar uma divindade, ainda mais quando essa divindade faz parte da crença de milhares de pessoas cuja religião tem um histórico de perseguição sistemático.


É sempre importante ter em mente que quando trabalhamos com divindades e mitologias (e eu estou falando aqui da dança como manifestação artística, sem cunho religioso), devemos entender que estamos mergulhando em uma outra cultura e, assim, em uma outra forma de ver e experienciar o mundo.


Para finalizar, gostaria de agradecer a Monni que, além de me sugerir o tema, contribuiu para o texto com o seu ponto de vista, além de indicações de trabalhos, vídeos e textos. 


Obs: não citei no texto, mas vale muito a pena conhecer o Balé Folclórico da Bahia, que pesquisa e trabalha com danças folclóricas brasileiras, dança afro e dança contemporânea, celebrando a cultura nacional com uma qualidade técnica e de produção altíssima. Além de ser uma fonte muito rica para o estudo dessas danças.


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A Monni também me indicou o Grupo Corpo, uma companhia de dança incrível de Belo Horizonte que trabalha, a partir de um repertório de músicas eruditas, danças clássicas e populares, incluindo a dança afro. 

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E como não podia deixar de ser, quero indicar o trabalho de duas bailarinas brasileiras que trabalham os movimentos dos Orixás e a dança afro em sua dança.


Monni Ferreira: Coreografia Sabá Odoyá



Kilma Farias: Improviso Oxum




Referências:


LIMA, G.R. F. Ensino da Dança dos Orixás e reflexões sobre identidade de gênero a partir do movimento. Conexões Paradoxais: Uso Impróprio. UFF, Niterói, 2016. Disponível em: <http://www.artes.uff.br/uso-improprio/publicacoes/conexoes-paradoxais.pdf>


BARBARA, R.. A dança das Aiabás: Dança, corpo e cotidiano das mulheres do candomblé. Tese (Doutorado em Sociologia) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. p. 201. 2002.


Souza, J. R. de. (2015). A Dramaturgia da Dança dos Orixás: Entrevista com Augusto Omolú. Urdimento - Revista De Estudos Em Artes Cênicas, 1(24), 237 - 246. https://doi.org/10.5965/1414573101242015237


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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

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