por Ana Terra de Leon
Quando comecei a escrever para a coluna meses atrás, propus a análise de uma fonte histórica. Hoje vamos finalizar aquela análise, retomando partes do que escrevemos no segundo post, para começar a relacioná-la, nas próximas postagens, com outras fontes e ao texto da coluna passada.
O documento que eu trouxe no primeiro e segundo posts trata-se de uma fonte escrita. É o discurso que Jamila Salimpour proferiu na 1ª Conferência de Dança Médio-Oriental da Faculdade Orange Coast, na Califórnia, em 1997. O texto fala sobre a trajetória pessoal e profissional de Jamila na dança, contada em primeira pessoa. O excerto que analisamos, fala sobre sua experiência com dança nos restaurantes árabes na década de 1960.
Disponibilizado no site da Escola Salimpour, tocada por Jamila, quando esta era viva, e sua filha, Suhaila. Originalmente, o documento destinava-se ao público da Conferência, porém, a partir da disponibilização no site da Escola, o documento passa a ter como público alvo praticantes e estudantes de dança do ventre e suas fusões, e pessoas interessadas em compreender a difusão desta manifestação artística no mundo ocidental, notadamente nos EUA.
Este documento pode ser considerado um testemunho, um tipo de escrita de si, afinal a autora constrói um discurso sobre si mesma a partir de sua trajetória. Este tipo de documento é muito interessante para observarmos que tipo de imagem o indivíduo busca construir sobre si mesmo.
Jamila apresentando-se em restaurante, acompanhada por músicos árabes. (Fonte: Jamila’s Arcticle Book).
Neste documento a autora descreve o cotidiano das bailarinas de cafés, restaurantes e boates de São Francisco, nos Estados Unidos, durante a década de 1960:
Já que os musicistas eram em sua maioria amadores, e de uma variedade de países árabes, a música se dava ao acaso. Raramente eles sabiam tocar a mesma peça [musical], frequentemente indo para direções distintas, e eles praticavam durante o show. Não se ouvia falar em ensaios. Não havia muitos músicos à disposição, então não podíamos reclamar. Era mais fácil substituir uma bailarina que um músico.
Se hoje em dia o uso de gravações nas apresentações de dança do ventre e Tribal são mais amplamente difundidos, nesta época os shows eram feitos com música ao vivo e que os músicos que executavam essas apresentações não eram profissionais. Podemos nos perguntar se isto representa, de fato, um avanço ou se a tecnologia mascara a precarização do fazer artístico: se antes havia uma preocupação em contratar, além das bailarinas, os músicos para acompanhá-las, atualmente vemos o mercado de dança se enxugando cada vez mais, e mesmo quando há músicos tocando, o número é reduzido - um tecladista faz as vezes de flautista, acordeonista, violinista… Outro aspecto interessante do ponto de vista das dificuldades do trabalho artístico se impõe: parece haver uma escassez de músicos em detrimento de uma quantidade maior de bailarinas, o que, talvez, tenha sido motivo de concorrência e até mesmo de desavenças entre elas, algo que fica implícito na frase “Era mais fácil substituir uma bailarina que um músico”. Com um pouco de imaginação histórica, podemos até mesmo imaginar que uma bailarina que tivesse muitas reivindicações frente aos administradores do estabelecimento pudesse ser dispensada em detrimento de uma “que desse menos problema”.
Voltando a pensar o aspecto da performance, é interessante notar que não parece haver a necessidade de ensaios por parte dos músicos, sendo todos eles membros da comunidade árabe e conhecedores de um repertório comum. Se as músicas não eram ensaiadas, inferimos que as performances de dança também não eram. A prática da coreografia não era comum, exceto em grandes grupos de folclore:
Todas as músicas que dançávamos eram em ritmos de [compasso] 4/4, com waha-da-oh-noz para taqsim. Músicas como Aziza, com pausas e mudanças no ritmo, eram então apenas tocadas entre as apresentações.
Jamila aprendeu seu fazer na dança ao observar outras bailarinas e tomar como referência aquelas que tinham por origem países do Norte da África e parte da Ásia. É interessante notar que o excerto lido refere-se a um local de apresentação muito conhecido no meio bellydancer: os restaurantes árabes. No entanto, o que mais chama atenção na fala de Jamila é sua preocupação com o ensino de dança:
Conforme eu trabalhava e assistia dançarina depois de dançarina, eu tentava descrever para minhas amigas da dança algumas das coisas que eu via e que eram diferentes. Quando Tabora Najim veio dançar na cidade, foi a primeira vez que eu vi uma queda turca e um flutter. Seu trabalho de véu era único e coreografado. Ela terminava cada apresentação com um kashlama. Frequentemente uma dançarina fazia um passo e então trabalhava variações em cima de um tema. Se um movimento era similar ou relacionado a outro de alguma forma, eu os categorizava como uma família. Eu cataloguei mentalmente tanto quanto eu podia lembrar e incluí em meu formato [de dança]”.
É possível afirmar que ela preocupou-se com a estruturação e propagação deste formato entre as amigas companheiras de trabalho e, posteriormente, alunas de sua escola, posto que a preocupação era, justamente, a maneira como ela poderia ensinar estes passos a outras pessoas - haja visto que esses passos vêm de danças cujo fazer se dá sem preocupação com uma estrutura nos moldes das danças acadêmicas, sendo elas expressões populares originalmente espontâneas ou com função de entretenimento e que estavam sendo pouco a pouco estruturadas para os palcos desde o início do século XX.
Como esta bailarina, acostumada ao estilo “cabaré”, inspirado em filmes de Hollywood, tornou-se uma das precursoras do estilo Tribal? Sabemos que o Tribal é uma dança contemporânea performática que se sustenta esteticamente numa construção de imaginário sobre o que era considerado “tribal” na década de 1960, 1970 e 1980. Não só o tribal não é tradicional, como também não se pretende a ser uma dança tradicional: possui estética própria, fusionada de uma maneira que justificasse a presença dessas bailarinas nas feiras renascentistas dos EUA da década de 1960. Se Jamila era uma artista familiarizada com o repertório musical árabe, se os passos que performava eram aprendidos a partir da observação de outras bailarinas do estilo cheio de glitter dos cabarés e casas noturnas, como ela pode ser considerada aparentada com o que anos depois veio a ser o Tribal?
Filha de Jamila, Suhaila Salimpour continua o legado da mãe, à frente da Escola Salimpour. (Fonte: Reprodução).
Segundo a filha de Jamila, Suhaila Salimpour, nos primeiros anos não era feita divisão entre “tribal” e “cabaré”. Essa separação teria surgido a partir do fim da década de 1960, quando sua mãe criou o grupo “Bal Anat”:
“(...) o que definia uma aparência, uma sensação ou uma estilização era o ambiente do show, a hora do show (...) e isso criava a aparência, a sensação, o figurino, a energia… minha mãe estava tentando justificar a dança do ventre no contexto da Renaissance Fair, então ela criou essa incrível fantasia tribal que sempre era apresentada como um Faz de Conta de Arte Performática, essa era até a palavra que ela usava, Faz de Conta, e era tudo ideia e fantasia dela.”
Para alguém desavisado, a indumentária e esta nomenclatura, “tribal”, poderia levar a uma impressão bastante incorreta: apesar de a estética da movimentação e dos figurinos beber muito nas informações disponíveis na época acerca de danças populares e folclóricas, a dança praticada pelo grupo de Jamila NÃO ERA “tradicional” de algum povo: eram os passos da mesma dança do ventre “cabaré” que ela performava nos restaurantes.
Principalmente no início de sua carreira, Jamila Salimpour praticava a dança performática com figurino de duas peças que conhecemos bem, pelos filmes da Golden Era, por exemplo. Porém foi só anos mais tarde que passaram a chamar de “estilo cabaré” esta dança do ventre. Nossa hipótese, ainda não confirmada, é de que essa nomenclatura pode ser surgido a partir do momento em que começou-se a fazer folclore e a própria estilização tribal.
Por que esses dados são importantes? Porque eles nos dão algumas pistas e perguntas históricas interessantes, a saber:
Tribal e dança do ventre não estão tão distantes como pode-se achar num primeiro momento;
O tribal, assim como a dança do ventre, está ligado ao entretenimento (suas precursoras dançam em restaurantes e feiras de renascença);
É frequente, no discurso de Jamila, que apareçam algumas noções que são muito próprias das danças acadêmicas ocidentais tais como excelência, complexificação, catalogação, e, num texto que ainda analisaremos nesta coluna, “tornar a dança mais difícil”. A pergunta que gostaríamos de deixar como provocação e gancho para nossas próximas postagens é: esta forma de reestruturar a dança, retirando suas características espontâneas, repetitivas, “orgânicas” (na falta de palavra melhor), não poderiam ser, em si, formas de orientalismo?
Nas próximas postagens, vamos complexificar este debate e tentar explicar estes questionamentos a partir de mais fontes históricas. Até a próxima!
Referências:
Artigo “Tradução: Cabaret or Tribal?”, de Suhaila Salimpour, publicado por Natália Espinosa em seu blog no Medium.
Artigo “Jamila’s Speech at the International Conference on Middle Eastern Dance”, 1997. Disponibilizado por Salimpour School em: https://www.salimpourschool.com/resources/ > http://www.salimpourschool.com/wp-content/uploads/2014/12/JamilaSpeechICMEDMay1997sml.pdf
Que história é essa?