[Que História é Essa?] Fontes históricas o que elas contam: analisando um discurso de Jamila Salimpour

 por Ana Terra de Leon

Olá! 

Se você leu o post passado, sabe que no texto que se segue vamos responder ao roteiro de perguntas que fizemos pra uma fonte histórica. Se você não leu o post anterior, para tudo e corre pra esse link pra entender o contexto e depois volta pra esse aqui, ok? 

Na postagem passada sugeri que analisássemos o discurso de Jamila Salimpour na Conferência de Dança do Oriente Médio de 1997. Sugeri um pequeno roteiro e uma problemática para respondermos, como veremos mais adiante.


Jamila Salimpour em figurino de duas peças. Reprodução.
Fonte: http://www.salimpourschool.com/


Para fazer essa pequena análise inicial, precisamos 1) seguir nosso roteiro e 2) saber um pouco mais sobre o documento disponível e como ele é analisado por historiadoras. A exemplo dos historiadores do século XIX (risos), trabalharemos com uma fonte que é, a sua maneira, institucional.

A partir de um movimento chamado Escola dos Annales, que aconteceu na França (e que podemos situar como iniciado na década de 1920) e reuniu muitos historiadores. A partir desta iniciativa, que começou com uma revista, as noções sobre o que poderia ser utilizado como documento histórico começaram a se alargar. Atualmente, qualquer tipo de registro, escrito ou não, deixado pela humanidade, pode ser abordado historiograficamente. Filmes, músicas, performances de dança, receitas de culinária (ou de remédio), fotos, estátuas, prédios!, cartas, entrevistas, literatura, poesias… As possibilidades são inúmeras!

Os limites da interpretação estão 1) na sua abordagem, 2) nas suas perguntas, 3) nas suas discussões teóricas. O fato de podermos utilizar elementos da cultura popular e de culturas mais oralizadas tornou a disciplina histórica menos focada nos processos concernentes às elites e à branquitude. Isso também permitiu que documentos fora de âmbitos institucionais pudessem ser analisados, o que fez com que trabalhadores e trabalhadoras passassem a integrar as páginas dos livros de história, bem como mulheres, os povos pretos, indígenas, asiáticos e por aí vai.  

No entanto, as fontes escritas seguem configurando-se como as mais analisadas por nós - seja porque há uma valorização da escrita no campo da história (o que pode e deve ser problematizado), seja porque é o tipo de fonte sobre o qual mais possuímos arcabouço teórico-metodológico para trabalhar, haja visto que foi o primeiro tipo de fonte aceita na disciplina.  

Retomemos portanto o documento que trouxe no post passado. Trata-se da compilação de um discurso proferido pela bailarina Jamila Salimpour. Como dissemos anteriormente, esse documento você encontra no site da Salimpour School, e é um discurso da bailarina Jamila Salimpour, proferido na International Conference on Middle Eastern Dance, em maio de 1997 (Conferência Internacional de Dança do Oriente Médio, em tradução livre). Vamos retomar o trecho que selecionamos no post passado:

“Já que os musicistas eram em sua maioria amadores, e de uma variedade de países árabes, a música se dava ao acaso. Raramente eles sabiam tocar a mesma peça [musical], frequentemente indo para direções distintas, e eles praticavam durante o show. Não se ouvia falar em ensaios. Não havia muitos músicos à disposição, então não podíamos reclamar. Era mais fácil substituir uma bailarina que um músico.

Todas as músicas que dançávamos eram em ritmos de [compasso] 4/4, com waha-da-oh-noz para taqsim. Músicas como Aziza, com pausas e mudanças no ritmo, eram então apenas tocadas entre as apresentações.

Conforme eu trabalhava e assistia dançarina depois de dançarina, eu tentava descrever para minhas amigas da dança algumas das coisas que eu via e que eram diferentes. Quando Tabora Najim veio dançar na cidade, foi a primeira vez que eu vi uma queda turca e um flutter. Seu trabalho de véu era único e coreografado. Ela terminava cada apresentação com um kashlama. Frequentemente uma dançarina fazia um passo e então trabalhava variações em cima de um tema. Se um movimento era similar ou relacionado a outro de alguma forma, eu os categorizava como uma família. Eu cataloguei mentalmente tanto quanto eu podia lembrar e incluí em meu formato [de dança]”.

Recorte do documento analisado neste texto. Reprodução.
 Fonte: http://www.salimpourschool.com/


No post passado, elaborei um pequeno roteiro de perguntas para respondermos neste post. Gostaria de lembrar que esta é uma análise preliminar de fonte e não um texto aprofundado, como um artigo acadêmico seria, por exemplo. Aqui, vamos fazer uma pequena interpretação e não uma análise propriamente dita.

 

1. Que tipo de documento é esse? 

 

Trata-se de uma fonte escrita. É o discurso que Jamila Salimpour proferiu na 1ª Conferência de Dança Médio-Oriental da Faculdade Orange Coast, na Califórnia. O texto fala sobre a trajetória pessoal e profissional de Jamila na dança, contada em primeira pessoa. 

 

2.  Quem produziu?

Jamila Salimpour o produziu. Porém, sendo este documento ligado a um evento, é possível dizer que ele foi também produzido pela Conferência em si, afinal há o aval das produtoras do evento para que este conteúdo seja proferido. Além disso, precisamos levar em consideração a veiculação do documento no site da Escola Salimpour, tocada por Jamila e sua filha, Suhaila.  

 

3. A quem se destinava?

Originalmente, o documento destinava-se ao público da Conferência Internacional de Dança do Oriente Médio. A partir da disponibilização no site da Escola Salimpour, o documento passa a ter como público alvo praticantes e estudantes de dança do ventre e suas fusões, e pessoas interessadas em compreender a difusão desta manifestação artística no mundo ocidental, notadamente nos EUA.

 

4. Qual a intenção da autora do documento em produzí-lo? 

Pode ser visto como um testemunho, um documento que carrega a memória de quem o produziu - e portanto deve ser tratado metodologicamente como tal, e não como atestado de verdade (falaremos sobre isso no próximo post!). É um tipo de escrita de si, afinal a autora constrói um discurso sobre si mesma a partir de sua trajetória. Este tipo de documento é muito interessante para observarmos que tipo de imagem o indivíduo busca construir sobre si mesmo

 

5. Do que se trata, qual o assunto deste documento?

Neste documento a autora descreve o cotidiano das bailarinas de cafés, restaurantes e boates de São Francisco, nos Estados Unidos, durante a década de 1960. 

 

6. Em que local e em que data foi produzido?

Não sabemos exatamente quando Jamila escreveu o discurso, mas sabemos que ele foi proferido entre 16 e 18 de maio de 1997, durante a programação do evento, que ocorreu numa faculdade da Califórnia.

 

7. Qual o contexto de produção? (Aqui,tente pesquisar que evento foi este)

Não é possível pensar nesta fonte como um documento isolado: está inserido dentro de um contexto maior - na verdade, em dois contextos maiores. Um destes contextos é o próprio país de Jamila (Estados Unidos) na década de 1990. O outro é o contexto da década de 1960, sobre a qual o documento se debruça mais demoradamente. O terceiro contexto é a própria Conferência.

O evento foi pensado por Angelika Nemeth (bailarina e professora de dança do ventre na Orange Coast College, integrando o quadro de professores de dança), em conjunto com Shareen El Safy (bailarina que foi editora e colunista da Habibi Magazine entre 1992 e 2002) e Sarah Saeeda (nome artístico de Sarah C. Kent, bailarina de dança do ventre com vasta experiência nos palcos do Egito). 

 

8. Quem preservou e disponibilizou este documento (o original e/ou a tradução que você leu)? Com que finalidade?

É interessante se perguntar por que motivo esta fonte foi preservada de maneira pública no site da Escola da família Salimpour. Possivelmente foi preservado inicialmente por Jamila, constando em seu acervo pessoal, e posteriormente divulgado por Suhaila, que, sabe-se, tem um papel importante na preservação e propagação dos ensinamentos do formato iniciado por sua mãe e continuado por ela própria.

Por tratar-se de um testemunho, é sempre necessário ter um olhar crítico para esta produção. O texto busca firmar uma autoridade da autora em relação aos “primórdios” da prática de dança do ventre em seu país e sua propagação. 

 

9.  Quais pontos deste documento lhe chamaram mais atenção?

Esta resposta é onde cada um vai privilegiar no texto os aspectos que considera mais pertinentes de acordo com a abordagem. Vou utilizar como exemplo a questão envolvendo as músicas utilizadas nas performances:

Pelo excerto selecionado, é possível captar algumas coisas a respeito da maneira como eram estruturados os shows na época. Em primeiro lugar, podemos identificar que os shows eram feitos com música ao vivo e que os músicos que executavam essas apresentações não eram profissionais. A estrutura das músicas em compassos regulares parecia ser pensada de forma a facilitar não só a execução das mesmas quanto da dança em si. 

Disso já podemos concluir que: as performances não eram ensaiadas, e que possivelmente a prática da coreografia não era amplamente difundida, visto o caráter improvisado da própria execução da música. Também podemos concluir que dançar ao som de gravações também não era comum. 

 

10. Em relação a nossa problemática de pesquisa, é possível estabelecer algum tipo de análise ou resposta a nossa pergunta inicial?

 

Lembrando a problemática: Quero entender como Jamila Salimpour iniciou seu trabalho de dança e como ela estruturou suas ideias sobre como era a dança daquela época.

A partir do excerto lido, é possível sugerir que Jamila aprendeu seu fazer na dança ao observar outras bailarinas e tomar como referência aquelas que tinham por origem países do Norte da África e parte da Ásia. Podemos inferir que Jamila estruturou seu próprio estilo de dança a partir da observação e catalogação das movimentações destas dançarinas, separando-os em “famílias”, tendo por referência sua similaridade ou as relações entre eles. Esta separação entre famílias se dava com base principalmente nas variações de um mesmo passo executado elas bailarinas. Por fim, é possível afirmar que ela preocupou-se com a estruturação e propagação deste formato entre as amigas companheiras de trabalho e, posteriormente, alunas de sua escola, posto que a preocupação era, justamente, a maneira como ela poderia ensinar estes passos a outras pessoas - haja visto que esses passos vem de danças cujo fazer se dá sem estruturação, sendo elas expressões populares originalmente espontâneas e que estavam sendo pouco a pouco estruturadas para os palcos. 

Por hoje, é isto! Eu sugiro que quando/se você estiver confortável com esse tipo de análise, faça esse exercício com as pessoas pra quem você leciona: construam juntas uma problemática e deixe como tarefa encontrar essa documentação. 

No nosso próximo “encontro”, trarei alguns apontamentos para historicizar estas informações, e então fecharemos este primeiro ciclo de posts com a análise desta fonte riquíssima. Nos vemos em fevereiro!

 

Referências:

Dicionário de Conceitos Históricos, livro de Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva. São Paulo: Contexto, 2012.

História e Memória, livro de Jacques Le Goff. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

Jamila’s Speech at the International Conference on Middle Eastern Dance, 1997. Disponibilizado por Salimpour School em: https://www.salimpourschool.com/resources/ > http://www.salimpourschool.com/wp-content/uploads/2014/12/JamilaSpeechICMEDMay1997sml.pdf

 

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Que história é essa?

Ana Terra de Leon (Florianópolis-SC) é bailarina de ATS® e Dança Oriental, historiadora, com mestrado em História Cultural pela UFSC e especialista em História da Psiquiatria no Brasil. Pesquisadora autônoma, coordena o Heréticas, Grupo de Estudos sobre História da Bruxaria, e o Tribus Nexum, sobre danças orientais e suas fusões. Participa da equipe organizadora do Praksis - Simpósio brasileiro de fusões tribais e é integrante do Coletivo Hunna - Historiadoras que dançamClique aqui para ler mais post dessa coluna! >>


[Tribal Brasil] Trânsitos entre Memória Individual e Memória Coletiva

 por Kilma Farias

Legenda: Ruth St Deni (esquerda), Mata Hari (centro) e Carmen Tórtola (direita)

O Tribal Brasil aborda corporeidades, memórias e multiplicidades do processo identitário de tradições diversas em diálogo com a contemporaneidade. Essa relação plural entre linguagens, visões de mundo, espiritualidades, construções do corpo coletivo, sentido e tempo se dá no espaço do corpo.

Ao falar de tradições e diálogos com a contemporaneidade, estamos falando do que Stuart Hall (2011) chama de traduções culturais. Para compreender as traduções e os trânsitos que suscitam entre memórias trago primeiramente a compreensão de três formas de construção de identidades abordadas por Hall.

A primeira delas Hall chama de “sujeito do Iluminismo”, onde o centro do “eu” é a identidade de uma pessoa. Pessoa essa construída no pensamento cartesiano de um corpo apartado da mente. A segunda identidade ele definiu como “sujeito sociológico” e a percebeu como um elemento estabilizador entre o mundo do “eu” de cada sujeito e os mundos que eles habitam; a identidade como uma espécie de estrutura integralizadora entre o sujeito e o mundo. E a terceira é a do “sujeito pós-moderno”, uma identidade utópica. Traz a ideia de uma multiplicidade em um sujeito fragmentado, composto de não uma, mas várias identidades sem necessariamente buscar nexo entre elas. Senão vejamos:

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda história sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. (HALL, 2011, p. 13).

 
Essa “história sobre nós mesmos” ou “narrativa do eu” compreendo como a memória individual em Halbwachs (2003) resultante de uma capacidade de nos reconhecermos como imagens, assim como tudo que nos rodeia, partindo da percepção individual de cada sujeito. Desse modo, “[...] é bem verdade que em cada consciência individual as imagens e os pensamentos que resultam dos diversos ambientes que atravessamos se sucedem segundo uma ordem nova e que, neste sentido, cada um de nós tem uma história.” (HALBWACHS, 2003, p. 57).

Essas histórias fundem-se, cruzam-se, diferem e formam pontos de vista de uma memória mais abrangente, a memória coletiva. E essa também é compreendida como uma multiplicidade dado os trânsitos dos sujeitos, interna e externamente.

De bom grado, diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influência que são todas de natureza social. (HALBWACHS, 2003, p. 69).

 Essa “combinação de influências” pode ser compreendida como uma das características do “sujeito pós-moderno” de Hall, colaborando com a construção de culturas híbridas, ou seja, o produto de várias histórias e culturas interconectadas. A esse acontecimento Hall chama de tradução cultural.

No Tribal Brasil, trabalhamos processos criativos a partir de danças populares e afro-brasileiras, sendo para Hall essa identidade nacional uma “identidade imaginada” construída pelos discursos carregados de sentidos e memórias que conectam o presente ao passado de um povo, visando um contorno, uma identidade. Desse modo, constrói-se uma trama que nos prende invisivelmente ao passado.

Assim, o imaginário de uma cultura nacional é trazida para dialogar com o estilo de dança Tribal Fusion, com o American Tribal Style e culturas diversas da Índia, Oriente Médio, America, Japão, etc., gerando outras qualidades em dança que passam por apropriação, antropofagia, hibridismo, acomodação, dependendo da forma de condução do processo criativo.

Há uma tendência histórica com o Tribal de retratar deusas que dançam, acredito que pela própria herança que nos foi deixada pelas bailarinas de vanguarda do Orientalismo do início do século XX.

Uma das mais importantes, conhecida como “a bailarina dos pés desnudos”, Cármen Tórtola Valencia (1882-1955) desenvolveu um estilo próprio que expressava a emoção pelo movimento. Para Patrícia Passos [1](2011, p. 2002), Tórtola Valencia retratava em sua dança uma recriação dos universos egípcio e indiano, figuras míticas como serpentes, deusas gregas, africanas e danças ancestrais americanas, revolucionando o ambiente da dança.

Outra personalidade a utilizar deusas que dançam em seu trabalho e que vai influenciar na estética do Tribal é Margaretha Gertruida Zelle (1876-1917), mais conhecida como Mata Hari. Sua contribuição na dança é controversa, uma vez que se destacou muito mais como cortesã do que como bailarina. E justamente por esse motivo trago-a para essa discussão.  Foi condenada à morte por prestar serviço de dupla espionagem para Alemanha e França durante a Primeira Guerra Mundial e fuzilada sem que se provasse essa afirmação.

A exótica espiã Mata Hari, começa sua carreira de bailarina em Java. Lá tomou os primeiros contatos com a cultura oriental. De volta a Europa, percebeu rapidamente que a experiência vivida na Indonésia poderia servir-lhe como trampolim para entrar na alta sociedade europeia, que carecia de exotismo para transcender a penosa situação econômica. Seu mito causa polêmica dado que a personagem Mata Hari se associou mais ao jogo da sedução, usada como arma política e social, do que à evolução da arte da dança. (PASSOS, 2011, p. 204).[2]

Símbolo de ousadia e força do feminino, Mata Hari retratou Cleópatra em seus personagens entre outras rainhas, princesas e deusas. Podemos perceber no exemplo dessa bailarina uma questão de gênero implicada com o poder simbólico do feminino atrelado à sedução. Questão essa que trataremos mais adiante.


A terceira influência é
a bailarina americana Ruth St. Denis (1879-1968) com seu gosto e interesse pelo exótico. Ao observarmos a trajetória artística de Ruth St. Denis, uma das pioneiras da Dança Moderna Americana, vamos contemplar uma história de encontro com o espiritual através da dança, indo buscar fonte de inspiração em diversas danças a exemplo da egípcia, indiana, flamenca, tailandesa, chinesa, entre outras.

Na sua escola, a Denishawn School em Los Angeles, Califórnia, passaram nomes como Martha Graham e Doris Humphrey, expoentes da Dança Moderna Americana que influenciam até hoje grande parte de bailarinos do Ocidente. Ruth St. Denis ficou conhecida pelos seus solos, a exemplo de
Rahda (1909) e The legend of the peacock (1914), onde retratava a “complexidade e autonomia das mulheres.” [3] Esses solos em muito se assemelham à estética do que conhecemos hoje como Tribal. “A mistura do físico e da divindade nas coreografias de St. Denis levou que ela estudasse várias religiões ao longo da sua vida. Em sua opinião, a dança era um ritual e uma prática espiritual.” [4]

 “A complexidade e autonomia das mulheres” retratadas por essas bailarinas, na maioria das vezes através de arquétipos de deidades femininas nos remetem a uma cultura do feminino e suas implicações socio-histórico e antropológicas em diálogo com as discussões sobre gênero.


Ao pensar os domínios estruturais e ideológicos das relações entre sexos, os historiadores sociais vão dizer que, para além de possíveis definições de papeis entre feminino e masculino, “O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as construções sociais [...]” (SCOTT, 1990, p.7) bem como um lugar de legitimação de poder, constituindo-se como “uma categoria imposta sobre um corpo sexuado”. (SCOTT, 1990, p. 7).


Desse modo, esse “corpo sexuado” dentro da dança Tribal propõe transcender sua condição humana buscando na condição de deidade seu poder simbólico para afirmar sua força enquanto feminino. Entendendo que “A história do pensamento feminista é uma história de recusa da construção hierárquica da relação entre masculino e feminino” (SCOTT, 1990, p. 19).

Diante do exposto, podemos teorizar a prática do Tribal Brasil a partir da compreensão do gênero como uma categoria de análise. Uma vida marcada por imposições, repressões, violência e enquadramento social, dados pela condição sexual, é reelaborada através da arte da dança trazendo deusas, rainhas e figuras míticas ao palco como legitimação da força do feminino. Esse feminino é trazido com uma sutileza diferente da dança do ventre. Esta, por sua vez, está sob o julgo do orientalismo o que reforça ainda mais a diferença entre os gêneros, muitas vezes estereotipando e subjugando a figura da mulher do Oriente.

Dentro do Tribal Brasil, a inspiração vem de arquétipos ligados às danças afro-brasileiras. Através das Iabás[5] Iemanjá, Iansã, Oxum e Obá essa construção pode ser mais bem observada, no sentido das intenções de movimento, subjetividades e atitudes geradas por cada orixá em diálogo com a individualidade da bailarina de Tribal e articuladas com outras hibridações de movimentos. 



[1] Conocida como la “bailarina de los pies desnudos”, Tórtola Valencia, uma mujer nacida em Sevilla a princípios del siglo XX, revoucionó el ambiente de la danza trayendoa lós escenarios uma recreación del universo egípcio, hindu e incluso de lãs danzas ancestrales americanas. (PASSO, 2011, p. 202).

[2] Tradução minha do original: La exótica espiá Mata Hari, empieza su Carrera de bailarina trás su estância em Java. Allí tomo lós primeros contactos com la cultura oriental. De vuelta a Europa, se percató rapidamente de que la experiencia vivida em Indonesia podría servirle como trampolín para entrar em la alta sociedad europea, que carecia del exotismo para transcender la penosa situación econômica. Su mito causa polémica dado que El personaje Mata Hari se asocó más al juego de la seducción, usado como arma política y social, que a la evolición del arte de la danza.

[3] Disponível em <http://tribalmind.blogspot.com.br/2011/01/ruth-saint-denis.html> , acesso em 12 de fev. de 2017.

[4] Disponível em <http://tribalmind.blogspot.com.br/2011/01/ruth-saint-denis.html>, acesso em 12 de fev. de 2017.

[5] “Orixás femininos do candomblé de origem iorubá, as Iabás, conhecidas no Brasil pelos nomes Iansã, Oxum, Iemanjá e Obá.” (ZENICOLA, 2014, p. 17).

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Tribal Brasil - Identidade no Corpo


Kilma Farias (João Pessoa-PB) é bailarina, professora, coreógrafa, produtora e pesquisadora na área da dança. É formada em Licenciatura em Dança e Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências das Religiões pela UFPB, desenvolveu dissertação voltada para a relação entre presença cênica e espiritualidade na Dança Tribal.  Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 


[Venenum Saltationes] Non Serviam

 por Hölle Carogne


Hoje conheceremos e exaltaremos artistas que lutam por um mundo sem a figura cristã de deus, sem os dogmas da instituição igreja e sem as imposições do cristianismo.

Entre nós, neste 25 de dezembro, artistas que acreditam na potência dos corpos em oposição.


  


NÃO SERVIREMOS!!!

  

~ Começaremos com o relato da bailarina Keila Fernandes, de Curitiba/PR. Ela nos conta um pouco sobre uma de suas coreografias e sobre sua visão anticristã. Infelizmente, não há registro em vídeo desta performance.

Carla Lorentz Fotografia

“Criei a coreografia ‘A Queda de Lúcifer’ para o evento Underworld Fusion Fest de 2018, mas já pensava nela há algum tempo. 

A figura de Satã sempre me fascinou, principalmente por se tratar de uma figura opositora, que se posiciona não apenas contra o Deus cristão, mas contra toda a estrutura de opressão desenvolvida e alimentada pela igreja ao longo dos séculos.  

Carla Lorentz Fotografia

Minha interpretação de Lúcifer, nessa coreografia, teve muitas inspirações diferentes, tais como Satã de John Milton e o do satanismo ateísta. Além da minha perspectiva pessoal.

No espetáculo, Lúcifer apareceu inicialmente como O Portador da Luz, que após se rebelar contra Deus, foi expulso do Paraíso e, como forma de vingança, entregou ao ser humano a Luz do conhecimento, tornando-se Satã, O Adversário.

Carla Lorentz Fotografia

Minha abordagem, traz Lúcifer como inimigo de Deus, mas não da humanidade a quem ele deu a capacidade de questionar, duvidar e escolher. Então quis interpretá-lo mesclando elementos mais obscuros, como os chifres e os olhos, com elementos angelicais, que remetiam à luz, que por sua vez, a meu ver, representa o conhecimento e a liberdade. 

Carla Lorentz Fotografia

 

Release da coreografia

 Recusei-me a aceitar uma existência de obediência e servidão.

Recusei-me a negar o brilho de minha luz, minha real natureza.

Rebelei-me. Caí.

Tornei-me inimigo de um Deus que rejeita a natureza de suas criaturas, transformando seus anseios e desejos em pecados que merecem a punição.

Sou Lúcifer, o anjo. Hoje chamam-me o Dragão Vermelho.

Aquele que deu à humanidade a Luz do conhecimento.

  

~ Na sequência, a bailarina Gilmara Cruz, de SP, compartilha conosco suas vivências centradas na filosofia anticristã:

 

“Minha filosofia de vida é pautada no Anticristianismo desde a minha adolescência. Antes disso, eu frequentava a igreja por imposição da minha família, mas nos primeiros anos da puberdade, comecei a ter reflexões próprias e experiências que me levaram ao total afastamento. Passei a ter muito repúdio pela imposição violenta e invasiva que o Cristianismo, em geral, exerce na vida de todo o Ocidente. Temos como resultado dessa imposição o massacre de várias culturas e o silenciamento de diversos tipos de religiosidades, sem falar nos inúmeros assassinatos feitos em nome de Deus. E eu nem preciso escrever textão para demonstrar isso. Na universidade venho estudando as Práticas de Magia e Feitiçaria perseguidas pela Inquisição e pela igreja aqui no Brasil. Foi tema de minha pesquisa na Graduação, no Mestrado e agora no Doutorado, ambos em História. Sempre problematizando a imposição cristã sobre as práticas de magia. Minha posição na Dança não é diferente. No meu trabalho com essa arte, tenho lidado com temas ritualísticos, pagãos, ocultistas e obscuros e isso ficou mais presente e evidente nos últimos anos.

O primeiro grupo de Dança do Ventre que formei (2006) chamava-se “Amon-Ra”, fazendo reverência ao Deus pagão Egípcio. O segundo grupo que formei foi o “Ventre de Ísis” (2013), numa perspectiva pagã e ritualística. Apresentamos uma coreografia em que fazíamos uma evocação a Deusa Ísis. 

“Ó grande deusa Ísis

Deusa da fertilidade

Venha até nós com teu fogo

Que contém força

Dê-nos a água da vida

Deusa dos 10.000 nomes

Invocamos tua graça

Prestaremos esta homenagem a ti

NEHES NEHES NEHES!!

NEBIT ASSET !!!”

A minha primeira coreografia de Tribal Fusion abordou o Deus do Mar, transitando nas nuances das ondas e evocando sua força e poder, numa perspectiva totalmente pagã. Para mim, o paganismo sempre foi um lugar de oposição ao Cristianismo, uma vez que, tudo que não era cristão, era perseguido e demonizado sob a alcunha de “pagão”. Ser pagã é uma resistência! 

Em 2013 realizei a 1º edição do Solstício das Deusas. O próprio nome do evento já faz referência ao paganismo e os temas de cada edição sempre faziam alusão ao mundo pagão, místico ou obscuro. O evento, atualmente (2020), já está em sua 10º edição e já contou com edições que abordaram temas como: Thelema, Paganismo, Submundo e afins. 

 

 

Em 2014, apresentei um improviso ritualístico em homenagem à Deusa Hecate, a deusa das bruxas. A apresentação partiu de um ponto de vista evocativo através da dança:

 

Grande mãe da noite, Tríplice, bela e divina!

Venha até a mim nessa noite

Com suas tochas traga luz a meu ser

Com sua chave abra novas e belas portas.

Hoje dançarei a ti!

As velas e os incensos serão acesos!

Tu que reside em minha morada

Será sempre lembrada e celebrada!!

Salve ó Εκάτη !!!

  

Particularmente, a Deusa Hecate faz parte do meu mundo pessoal intensamente. Presente em meu submundo, de forma sombria e dolorosa, motivando-me a lidar com meus demônios interiores e minhas sombras. Suas tochas me guiam e suas chaves já me ajudaram a abrir diversas portas. Para ela já fiz diversas apresentações e performances com Dança. 

O mundo obscuro me apetece, equilibra-me e alimenta meu ser, e é outro ponto de oposição, visto que a nossa sociedade ocidental, muito influenciada pelo cristianismo, renega o lado escuro do ser humano. Entrar em contato com os aspectos sombrios nos proporciona poder, força e autoconhecimento. E isso é fundamental na busca pela evolução pessoal, coisa que o cristianismo limita, diga-se de passagem. 

Em 2015, juntamente com minha amiga de dança a Mary Figueirêdo (Trupe Mandhala), lançamos um vídeodança, abordando temas sombrios e místicos, intitulado “Evocações Ancestrais”: 

Em meio a mãe natureza duas almas adentram a caverna da sabedoria e mesmo na escuridão sedutora dos profundos mistérios, a essência ancestral feminina é evocada! Que esta colheita seja farta e prudente! Que os ventos tragam o frescor da liberdade e da vontade e que sobre nosso solo raízes fortes, seguras e nutridas brotem! Mergulhamos no abismo mais profundo da terra e da natureza para encontrar-nos com a nossa verdade e assim nos permitimos dançar com o movimento cósmico!

 


Em 2016 apresentei, pela primeira vez, a coreografia “Lilith, a Lua Negra”, que, através de um ritual obscuro, busquei trazer uma atmosfera sombria e poderosa, exaltando a rebeldia de Lilith em renegar a submissão, o patriarcado e o cristianismo.

 

Em 2017, organizei, juntamente com minhas alunas, o espetáculo “A descida de Inanna ao mundo inferior”, que abordava de uma forma pagã e sombria a ida de Inanna ao inferno encontrar a sua irmã Ereshkigal. Nesse espetáculo eu dancei Ereshkigal, a rainha do inferno e foi uma das coreografias mais marcantes em minha evolução pessoal. No mesmo ano apresentei a coreografia intitulada “A estrela da manhã”, que abordava um ritual a Lúcifer, em busca de entrar em contato com aspectos de luz e sapiência.


 

Muitos trabalhos foram feitos em parceria com outras professoras, e, também, com minhas alunas. A maioria com foco no lado sombrio e místico, como: “As bruxas de Salém”, “As divindades da natureza”, “Mãe terra”, “Deusa Morrighan”, “Evocação”, “Sol Negro”, “Odes a Pan”, “Yuki Onna”, “Summoning the Gods”, entre muitas outras. 

No momento caótico da pandemia, produzi alguns vídeos de dança, dentre eles duas performances valem destaque aqui: Jurupari e Alucarda.

 


Jurupari é um espírito/deus do povo indígena, filho do sol, muito cultuado por nossos ancestrais em terras brasileiras (região norte e nordeste, mais frequente no Alto do Rio Negro). Ele costumava avisar, através da magia onírica, quando estava por vir um mau presságio, e, também, era considerado o criador das flautas. Mas com a chegada dos portugueses, essa entidade passou a ser demonizada e associada ao mal, ao Diabo cristão. Os jesuítas deram a ele a característica de demônio. Nesta performance, busquei ritualizar a essa entidade em pleno Solstício de Inverno, baseado na atuação da natureza, no qual as noites são mais longas que os dias, e, consequentemente, a escuridão é maior durante esse período. Busquei o encontro com essa entidade sombria do submundo indígena, através de um ritual com características "pagãs", baseado na religiosidade indígena/brasileira (como uso de flauta, maracás e tambores), em um processo de descida ao meu mundo inferior. Além do caráter religioso/cultural e espiritual, trouxe também o político na tentativa de decolonização, ou seja, dissolução das estruturas de dominação configuradas pela colonização e desmantelamento dos principais dispositivos, que nesta ideia é o Cristianismo imposto em nossas terras. A apresentação visa defender a liberdade religiosa e tenta desconstruir a demonização atribuída às práticas antigas, escuras e nativas do nosso país. 


Alucarda, a filha das trevas, é um filme mexicano e trata de terror sobrenatural, blasfêmia e profanação. Dirigido por Juan López Moctezuma, conta a história de Alucarda, uma jovem amaldiçoada em seu nascimento, que residia em um convento religioso até que despertou forças demoníacas, agindo de forma profana, libertina e blasfema... Nesta performance, faço uma homenagem ao filme e à personagem Alucarda. 

Minha posição Anticristã na arte da Dança não é uma imposição religiosa e intolerante, pelo contrário, é uma posição em defesa da arte laica, livre e que tenha como princípio o respeito ao diferente.

Algumas dessas apresentações estão postadas em meus canais:

| Gilmara Cruz Stúdio Online

Mais sobre o meu trabalho no meu blog: https://gilmara-cruz.blogspot.com/


PELO FIM DA IMPOSIÇÃO CRISTÃ!!!

 

  

 

~ A bailarina Carol Freitas, de Brasília/DF, interpretou Lúcifer e compartilhou outros dois trabalhos, que ela considera “renegados”:

 

 

 

~ A bailarina Patricia Nardelli, de Porto Alegre/RS, incorporou o próprio Diabo nas performances Ayin (sem vídeo) e XV. Aprecie:

Ayin – Fotografia de Carolina Disegna

 


~ Bianca Brochier (Porto Alegre/RS) profanando as imagens cristãs e ensinando o que é a verdadeira santidade:

  


~ Finalizamos esta celebração com performances diversas, cuja temática envolve as várias faces do adversário.

É importante salientar que não tenho acesso às ideologias destas bailarinas.

Os vídeos foram escolhidos por serem representações do Próprio: o Lúcifer, o Satã, o Mefistófeles, o Capeta, o Coxo, o Nosferato, o Ronca e Tussa, o Sem nome, o Tinhoso, o Dois Chifres, o “Demonho”, Aquele que não se nomina, o Sete Cruzes, o Chifrudo!

 

Divirtam-se!

 

Ego Umbra (EUA):

Elizabeth Zohar (Israel):


Hölle Carogne (Porto Alegre-RS):

Irkutsk (Rússia):

La Catalina (Rússia):


Long Nu (Argentina):

 

Luna Atra (Ucrânia):


Maureen (EUA):


Hölle Carogne e Michelle Loeffler (Porto Alegre-RS)


Raven Ebner (EUA):

Zkauba (Rússia):


Hölle Carogne (Porto Alegre-RS):


Obrigada à todos que dividiram seus trabalhos com a Venenum e também aos que estão dispostos a conhecer outras formas de pensar!

 

Até a próxima profanação!

Hail Saitan!


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Venenum Saltationes

Hölle Carogne (Porto Alegre-RS) é  a alma por detrás do humano, do rígido. É curiosa, entusiasta e selvagem. Uma admiradora da arte, da dança, da literatura e da música.O "esquisito" a seduz. Seus poemas e seus movimentos estão impregnados de ideologias, de crenças. Compassos pouco convencionais, cheios de misticismo, de oposição, de agressividade.Ocultismo, caos e luxúria sendo mesclados às suas criações e retratados de forma crua, orgânica, uterina.


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