por Kilma Farias
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Solo "Es passos Entre Mundos" de Kilma Farias, onde discutia essa ligação entre dança e espiritualidade. Foto de Milena Medeiros |
A proposta do Tribal Brasil na Cia Lunay, grupo que coordeno há 18 anos, é acolher as memórias e danças do estilo Tribal Fusion, assim como acolher as próprias memórias e as das danças populares e afrobrasileiras, buscando renovações no fazer da dança e ao mesmo tempo renovações em quem dança. Esse transformar-se para ter acesso a sua verdade é bem desenvolvido por Foucault ao refletir sobre o “cuidado de si”. Prática essa que tem estreita relação com a arte.
A intersecção entre o pensamento de Foucault e a reflexão artística é particularmente presente quando se trata de considerar a arte como campo que coloca em jogo as possibilidades de reinvenção do próprio artista, pretendendo assim contaminar ou convidar o público a compartilhar da sua experiência ou, para utilizar uma expressão do autor, a arte vista como um lugar em que se desencadeiam processos de subjetivação. (QUILICI, 2015, p. 151).
Os processos de subjetivação corroboram para a construção do sujeito “extemporâneo”, partindo da compreensão das redes de poder instauradas pelas instituições e construção da atual realidade sociopolítica, econômica e cultural, visando um olhar de ultrapassamento onde o sujeito, consciente do jogo, desenvolve modos de estar no mundo mais liberto.
Podemos pensar na ideia de um corpo como memória, sendo esse corpo um “organismo biológico talhado no tempo”. E pergunto: talhado por quem? Talhado pelas relações, dos diálogos que travamos com os corpos de outras bailarinas, e no plano das ideias mentais. Talhado ainda pelas influências que nos atravessam. Isso confere uma forma de perceber a dança como ação de transformação.
Neste sentido, podemos pensar numa ideia de imaginário da dança como um mestre, um guia, como algo superior a si mesmo que nos transforma.
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Solo "Es passos Entre Mundos" de Kilma Farias, onde discutia essa ligação entre dança e espiritualidade. Foto de Milena Medeiros |
A transformação surge no próprio fazer da dança Tribal Brasil, dançando nossos femininos através de deusas, personificações de movimentos da natureza, Iabás, corporeidades femininas que utilizam a saia como o coco, o carimbó, o tambor de crioula, samba de caboclo, jongo, etc.
Seja de uma forma ou de outra, reconhece as lacunas, os espaços de silêncio gerados nessa dupla autobusca: enquanto sujeito que se transforma e enquanto artista que produz novas configurações na própria dança.
O transformar traz uma condição de auto-observação, pois se assim não procedemos, podemos cair no profundo caos, seja como sujeito e/ou artista. Por isso, mais importante do que simplesmente transformar é estar atento para as qualidades dessas mudanças. Uma vez que a mudança é inevitável devido a estarmos imersos numa realidade de impermanência, precisamos estar atentos para identificá-la seja a passos lentos ou intempestivamente causando rupturas. Devemos estar atentos ainda para percebermos em que níveis essa mudança opera.
É necessário, portanto, considerar a qualidade das diferenças desencadeadas, o modo com que se ultrapassa a norma. Este me parece um critério importante quando se trata de cuidar de processos artísticos que pretendem investir radicalmente na desestabilização de modelos e referências. O artista tem que desenvolver modos de avaliar e lidar com os estados de corpo-mente – muitas vezes sutis – que ele pretende desencadear em si mesmo e no público (qualidades de consciência, de atenção, afetividade, energia, reflexão, etc.). (QUILICI, 2015, p. 160).
A dança também pode ser sinônimo de liberdade, pois através dela podemos nos deslocar para fora do tempo contemporâneo. A dança pode instaurar um outro tempo e um outro sujeito, o “extemporâneo”. Deslocada para fora de si e do seu tempo, podemos compreender corpo como experiência, deixando delinear-se uma espiritualidade do corpo. O ato de dançar é um modo de conectar-se com energia. Energia essa que depende de uma entrega, como um modo de sentir-se diluída num todo universal: libertação.
Outro ponto importante para que percebamos essas conexões entre espiritualidade e arte é o próprio viver e o fazer dança como caminho de evolução. E esse processo passa pelo cotidiano, por nossa percepção e relação com os outros e com o mundo.
Ao perceber a dança como uma forma de se conhecer em profundidade, trazemos questões como a da ascese, dentro do conflito entre as oposições e dualidades que carrega entre corpo e mente, por exemplo. Para pensar a ascese nos processos de arte, trago a reflexão de Quilici (2015, p. 177 e 178) sobre o conceito trabalhado por Yasuo Yuasa[1].
Percorrendo uma ampla gama de autores da filosofia ocidental (Bergson, Merleau-Ponty, Heidegger), da chamada “Escola de Kyoto” (Watsuji, Nishida), além da literatura e das práticas tradicionais budistas (especialmente do Zen, como em Dôgen), Yuasa demonstra as vinculações entre treinamentos existentes em artes marciais tradicionais japonesas e conceitos e técnicas encontrados nas práticas e formas de vida budista. A noção de shugyo, que pode ser traduzido como “cultivo”, expressaria justamente um modo de treinamento estruturado num ambiente monástico, mas que se irradiou para outros aspectos da cultura, inspirando práticas artísticas específicas. Nesse sentido, tal ideia nos permite pensar as vinculações entre a experiência estética e a questão da ascese. O tema não é estranho ao pensamento ocidental. Poderíamos fazer algumas aproximações entre shugyo e a noção de “cuidado de si”, estudada por Michel Foucault (2006) [...]. (QUILICI, 2015, p. 177 e 178).
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Solo "Es passos Entre Mundos" de Kilma Farias, onde discutia essa ligação entre dança e espiritualidade. Foto de Milena Medeiros |
Sem dúvida as noções de “cultivo” e “cuidado de si” aproximam-se, pois ambas irão se valer de práticas que corroborem com o aprimoramento pessoal e artístico do sujeito, constituindo-se como preceitos de “trabalhos colaborativos no tempo”. É preciso tempo para lapidar um pensamento de movimento que se instaura no corpo, tempo para “limpar a técnica”, tempo para amadurecer ideias, tempo para processar visões outras de mundo, tempo para se perceber e reagir às transformações internas e gradativas, em outras palavras: tempo para praticar-se.
E o terceiro assunto que trago enquanto espiritualidade que perpassa pelos estados de presença cênica é o pensamento da coletividade, da tribo, da humanidade enquanto corpo. E esse corpo tem uma qualidade específica, a da Mãe Terra e dos seus elementos como água, terra, fogo e ar.
Um caráter transformador, transgressor, libertador, contemporâneo, extemporâneo, de ascese, coletivo, relações de sororidade, de poesia, de comunhão com o espaço, seja ele o meio urbano ou o campo, a praia, o rio ou a floresta. As bailarinas de Tribal Brasil encontram em suas práticas uma forma de se dizerem em suas escolhas e de se pensarem enquanto se dizem, seja no pensamento por movimento ou na linguagem verbal. A articulação de memórias coletivas de outrem (que fazem parte de suas pesquisas em dança) suas memórias coletivas (dos seus bairros, cidades, países) e suas lembranças pessoais geram novas memórias coletivas – o corpo de memória do Tribal Brasil. Memória essa que não busca fechar-se em conceitos, mas ampliar-se abraçando as diversidades do mundo, deste e de outros tempos.
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[1] Yasuo Yuasa (1925-2005) foi um importante filósofo japonês da religião que dedicou seus estudos à teoria do corpo na filosofia ocidental e asiática.
Referências Bibliográficas
QUILICI, Cassiano. O ator-performer e as poéticas de ta transformação de si. São Paulo: Annablume, 2015.
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Tribal Brasil - Identidade no Corpo
Kilma Farias (João Pessoa-PB) é bailarina, professora, coreógrafa, produtora e pesquisadora na área da dança. É formada em Licenciatura em Dança e Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências das Religiões pela UFPB, desenvolveu dissertação voltada para a relação entre presença cênica e espiritualidade na Dança Tribal. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>