Por Nadja El Balady
Convido você, leitor do Coletivo
Tribal, a mergulhar comigo no universo cultural e artístico onde nós, estudantes,
dançarinos, coreógrafos e professores de tribal e fusões realizamos nossas ideias
e sonhos de arte. A coluna “Folclore em Foco”, se propõe a apontar direções
para a pessoa que estuda a dança oriental e suas estilizações, entre elas o
estilo tribal de dança do ventre. Vamos passear por diferentes culturas,
derrubar algumas fronteiras, entendendo que o universo da fusão pode beber de
fontes muito diferentes e inspirações variadas.
Você já foi a um festival de dança do ventre?
Se já foi, percebeu que existe uma categoria considerada para
“folclore” para determinadas apresentações. Mas o que são estas “danças
folclóricas” como se relacionam com o estilo tribal?
Em nosso primeiro mergulho de 2021, convido você a pensar
comigo sobre o que são danças folclóricas, danças populares, danças cênicas e
teatrais, para poder pensar qual é a dança que você faz.
Danças populares e folclóricas
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Samba de Roda |
A dança popular é aquela que faz parte da identidade cultural de determinada comunidade. Acontece em família, com amigos, em ambiente descontraído, celebrações e partes profanas de festas religiosas. A dança popular é espontânea, transmitida oralmente (informalmente), através de hábitos culturais, se transforma através do tempo e faz tranças culturais com outras manifestações culturais de lugares vizinhos.
Inicialmente, a dança popular não requer espaço cênico, não tem plateia. O objetivo é a celebração em si. Expressar sentimentos, unir a comunidade, reafirmar a identidade cultural.
Podem existir diferentes entendimentos do que é folclore. De maneira em geral, entendemos como “folclore” tudo aquilo que se relaciona à tradição e costumes de um povo, que seja transmitido de geração em geração. Sejam lendas, hábitos alimentares, rituais religiosos e artes em geral. Os folguedos populares folclóricos, estão ligados à tradição através de ritos e festejos, que geralmente são de origem religiosa. Inclusive o ritual do casamento, muitas danças populares ao redor do mundo estão conectadas às tradições de matrimônio.
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Folia de Reis |
É preciso prestar bastante atenção no aspecto religioso comum à muitos dos folguedos folclóricos, no Brasil principalmente. Religiões têm festas, músicas e danças típicas em datas importantes em seus calendários. Estes ritos e festejos, passam a ter uma importância comunitária muito grande e hábitos culturais são mantidos enquanto tradição popular em função da religiosidade.
Ex: Peguemos duas manifestações populares brasileiras, a Folia de Reis e o Funk. Um pode ser considerado folclore e outro, com certeza não. Por quê? Porque a Folia de Reis é um folguedo completo, que compreende dança, música e teatro, mantida de geração a geração, tradicional e ligada ao ciclo natalino do calendário católico. O Funk... nada disso.
Então existem dança populares que são folclóricas e outras não. Dentro deste ponto de vista, a grande maioria das danças que aprendemos como folclore árabe não seriam danças folclóricas, mas danças populares, como por exemplo: dabke, shaabi e mesmo o baladi.
A dança popular no palco
O palco é a delimitação do espaço cênico, a divisão entre artista e plateia. O espaço cênico se delimita quando a dança ganha uma intenção, um objetivo. O artista influencia o seu meio compartilhando emoções, ideias e visões de mundo.
Podemos ver isso acontecer em folguedos populares que compreendem também elementos teatrais, incluindo personagens, caracterização de figurino e até diálogos entre as figuras. Todo o folguedo gira em torno deste espaço imaginário que se cria para o desenvolvimento de autos, bailes e jogos de cena.
Danças populares de festas e celebrações também se modificam quando transportadas para o espaço cênico, em performance para a plateia, ganham preocupações cênicas, como mudança de posicionamento, expressão facial, gestual de cena, figurino e técnica.
Podemos comparar ao nosso samba brasileiro, onde se difere o modo como sambamos em festas, do samba que é levado para o palco por passistas e dançarinos profissionais. A produção de maquiagem e figurino fica para os desfiles e apresentações das escolas de samba. Também a movimentação das passistas profissionais é diferente, com técnica e elementos de efeito cênico que muito diferenciam da dança casual feita em casa.
Danças teatrais e cênicas
Chamamos “dança cênica” todas as modalidades de dança que se desenvolveram a partir do Ballet. Todas as danças modernas e contemporâneas, todos os estilos que vieram do ballet ou que romperam com o ballet, todas as danças de palco desenvolvidas no ocidente. Danças que exigem fundamento técnico, estudo e habilidade. Concebidas para a performance, com o objetivo da experiência artística. A dança cênica pode ser teatral ou abstrata. Teatral significa que existe um enredo, uma dramaturgia, caracterização de personagens, que transmite uma mensagem. A dança abstrata tem por fim o próprio movimento, a habilidade técnica, o virtuosismo. A criação coreográfica e sua execução técnica é o foco principal da performance.
No ocidente, termo “dança teatral” ou “dança teatro” surgiu no início do século XX na Alemanha, como definição de uma corrente de pensamento que pretendia distanciar esta nova forma de dança das tradições do ballet clássico, durante o movimento Expressionista. Um de seus maiores representantes foi Rudolf Laban e teve ainda grandes nomes da dança no ocidente como Mary Wigman e Pina Bausch.
A dança teatral no Egito
É comum encontrarmos, principalmente entre professores egípcios, o entendimento de que danças folclóricas são danças teatrais.
Diversos folguedos folclóricos carregam em suas tradições aspectos teatrais importantes. No Egito, na segunda metade do século XX, o grande coreógrafo Mahmoud Reda transportou com maestria os aspectos teatrais populares para o palco, criando novas corporeidades para representar personagens do povo, criando danças que não existem na tradição popular, mas que se encaixam na teatralidade de representação cultural de hábitos regionais ou períodos históricos, criando uma fantasia folclórica teatral. Podemos citar como exemplo dois estilos criados por Reda: a dança com melaya laff e o Mwashahat.
Não existe, dentro da tradição popular egípcia”, uma dança com melaya. Este é apenas um acessório de vestimenta comumente usado pelas egípcias há várias décadas atrás. A dança com melaya foi criada por Mahmoud Reda e Farida Fahmy para retratar um tipo de mulher egípcia, criar um personagem incluído em um enredo e com ele uma cena que envolveria interpretação e dança. Melaya é “dança teatral” que usa a movimentação popular “baladi “ou “skandarani” como base técnica de sua expressão.
Danças populares cênicas - estilizações
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Dabke |
Na intercessão entre a dança cênica e a dança popular, existe este espaço da cena popular, como já exemplificado antes com o samba. Muitas formas de dança étnica ocupam o espaço cênico, sobem ao palco, cumprindo ainda uma função de afirmação da identidade cultural, mas com um novo objetivo: O entretenimento, criando estilizações da cultura popular. Isto acontece com inúmeras manifestações populares no mundo todo.
Como exemplo deste fenômeno de estilização no mundo árabe e que conhecemos através da dança do ventre, podemos citar o dabke libanês. Uma dança popular, fruto de hábitos do cotidiano, a maior expressão de identidade cultural libanesa, com suas diferentes corporeidades regionais. Não existe casamento sem dabke no Líbano. O dabke é uma dança circular, que não requer roupa especial e não precisa de delimitação de espaço cênico para acontecer. O objetivo é a celebração em si.
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Dabke (coreográfico) no palco |
Quando assistimos performances de dabke no palco, normalmente são feitas por grupos de dabke coreográfico, que modificam e inserem novos movimentos em favor da performance cênica. No palco, para uma melhor visualização da cena pelo público, o posicionamento muda, a roda tradicional se abre. Os dançarinos usam figurinos que imitam as roupas do dia a dia, ou representam um período histórico, mas sempre com glamour e brilho. Novo repertório de movimento é criado e existe a valorização do dançarino virtuose.
A dança do ventre e as fusões étnicas
A dança do ventre é uma dança étnica estilizada, cênica, de palco, que teve origem na tradição popular egípcia e foi se tornando o que conhecemos a partir da virada do século XIX para o século XX, quando aconteceram transformações de seu espaço cênico e da sua importância social como arte e entretenimento. Imortalizada para o mundo através do cinema, a raks el sharq (dança do oriente, em árabe), se tornou uma expressão artística popular e tradicional, intimamente conectada às celebrações da cultura egípcia. Com mais de um século de evolução, é uma modalidade cênica que se espalhou pelo mundo e encontrou novos significados para mulheres de diferentes tempos, de diferentes locais.
Assim surgiram as muitas estilizações da dança oriental, no fazer desta dança em diferentes contextos cênicos, sendo atravessadas pelas questões sociais através do tempo, fazendo tranças culturais com muitas outras etnias ao redor do mundo. A dança do ventre que se fazia no Egito da década de 1920, não é a mesma dança do ventre que se faz no Egito em 2020. A dança do ventre egípcia não é igual à dança do ventre no Brasil. Nem poderia mesmo ser. As estilizações da dança surgem e se modificam por conta do tempo, de fatores geográficos e históricos. |
FatChance BellyDance |
O estilo tribal é fruto da estilização da dança do ventre nos Estados Unidos e tem toda uma história de evolução e fundamento estético.
A estética tribal se liga aos elementos étnicos de danças populares do norte da África, oriente médio, Índia e Europa. Podemos relacionar uma lista enorme de influências culturais, seja na movimentação, nos figurinos e também nas músicas escolhidas para as performances. Estas influências todas misturadas, organizadas em um sistema que compõe técnica, vocabulário de movimentos, elementos de cena e dinâmicas de palco formam o que a gente conhece como fusão. O estilo tribal americano (American Tribal Style®, ATS®, FCBD Style®, Fat Chance Belly Dance Style®) é uma fusão étnica que usa elementos de culturas populares como elementos de cena, para expressão artística, sem representar nenhuma etnia específica.
Fusão é um conceito bem abrangente e compreende que o dançarino domine mais de uma modalidade de dança popular ou cênica para combinar seus elementos e montar uma coisa nova, híbrida, com outro significado.
A fusão de diversos elementos étnicos em uma performance é uma expressão cênica, que pode ser abstrata ou teatral. Música, figurino, maquiagem, movimentação, são os elementos principais usados para criar coreografias híbridas, que usam mais de uma modalidade de dança. A performance que usa elementos étnicos na fusão, não cumpre papel de representatividade, nem de afirmação de identidade cultural de nenhum povo, mas é a expressão da coreógrafa, da dançarina que pode utilizar diferentes recursos para a criação.
Todas as estilizações de dança do ventre podem ser entendidas como fusão étnica, desde as diferentes corporeidades regionais (dança do ventre egípcia, libanesa, brasileira, argentina, turca, estadunidense, russa), como as diferentes estéticas, como tribal e fusion. Dança fusão é um conceito maior, fusão com dança do ventre é algo mais específico e Fusion Belly dance é um estilo que se originou do estilo tribal nos Estados Unidos e que tem toda uma história e fundamento estético.
Vamos ressaltar isso, que Fusion Belly Dance, apesar de ser traduzido como dança do ventre fusão, não é qualquer fusão com dança do ventre. Hoje em dia, por conta da queda do termo “tribal” pelas dançarinas dos Estados Unidos, todo o contexto do estilo tribal pode ser chamado de fusion belly dance, por falta de melhor definição.
Esta fusion bellydance que surgiu do tribal fusion no final da primeira década do século XXI, absorveu elementos teatrais, explorando temas, ambientes e personagens, como é o caso do dark fusion e das fusões com inspiração cabaré vaudeville e vintage.
Responsabilidade e apropriação cultural
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Nadja El Balady - fusão afro |
É preciso responsabilidade ao trabalhar diferentes elementos étnicos em cena. A fusão étnica é a que mais precisa se preocupar com os aspectos da apropriação cultural e suas consequências negativas. Ao mesmo tempo em que pode ser a porta de entrada para estudos e conhecimento a respeito de culturas populares importantes e antigas, a artista ocidental precisa se refletir em como vai se utilizar destes elementos sem aprofundar a desigualdade social e econômica em relação às pessoas a quem pertencem estes elementos étnicos que usamos.
Apesar dos cuidados e reflexões em relação à ética do fazer dança fusão, a existência deste tipo de arte é inevitável. Através das tranças culturais, onde uma pessoa de uma cultura influencia outra, a arte encontra novas formas de expressão e se transforma. É um processo antigo, tão antigo quanto a humanidade. Através do estilo tribal e suas fusões étnicas, ocupamos este lugar de conexão entre diferentes realidades sociais, econômicas, culturais e artísticas, assim como temos como experiência as vantagens e desvantagens de exercer a liberdade artística.
É fato que a dança do ventre no ocidente encontrou um novo significado que se distancia de seus objetivos populares e cênicos no oriente. Principalmente quando começou a ser ensinada em uma metodologia de ensino ocidental, ela começou a ocupar um lugar diferente, artístico, mas também terapêutico, do despertar do feminino, que faz como que a dança do ventre tenha um apelo universal.
A arte revela o ser humano, é a expressão maior de visões de mundo, entendimentos da realidade e imaginário coletivo. Muito do que se cria em dança do ventre, seja tradicional, ou tribal, tem a ver com este imaginário, onde a mulher que dança ocupa um lugar diferente das pressões sociais do patriarcado, diferente da origem social da dança. Como uma dança cênica, tem a liberdade de criar outros contextos que não condizem nada com a realidade cultural em que foi criada e é nesse espaço cênico, teatral, imaginário, que novos horizontes se delineiam para a artista que pode se utilizar desta linguagem para sonhar com uma nova realidade para si, para despertar suas potencialidades e transformar o mundo que a cerca.
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Bal Anat (2016) |
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Folclore em Foco
Nadja El Balady (Rio de Janeiro-RJ) é diretora do grupo Loko Kamel Tribal Dance e proprietária do Oriental Studio de Dança no Rio de Janeiro, dedicando-se
há 21 anos a estudar danças orientais. Professora de Dança do Ventre, American Tribal Style® e Tribal Fusion, com experiência internacional na Europa em shows e workshops. Estuda o Estilo Tribal desde 2005 e é uma das pioneiras da Fusão Tribal Brasileira. . Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>