por Kilma Farias
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Spirit of the Tribes |
Muito se fala sobre o extermínio
indígena, violência física e cultural, além de desapropriação de terras. O
senso comum dos livros de história nos passa a ideia de um índio passivo,
indolente, aculturado. Essa face de uma construção histórica dificultou por
muito tempo o pensamento de uma estruturação da etnia indígena através do
caboclo – resultado das diversas misturas entre índios e povos das cidades
circunvizinhas.
O Brasil precisa conhecer,
discutir e compreender como o caboclo afirma a identidade indígena. Essa
identidade é reconstruída com base nas afinidades e afetividades a partir dos
processos de territorialização, gerando uma reorganização sociocultural. Desse
modo, pensar esse caboclo do Nordeste é conhecer os processos históricos e os
fluxos culturais expressos nas relações com cada ator social. A cultura deixa
de ser vista sob a ótica da perda para ser entendida sob a ótica das relações
sócio-históricas.
Ao longo do tempo, o caboclo desenvolveu
diversas estratégias de resistência, questionando as explicações tradicionais
do extermínio indígena, colocando-se como sujeitos que (re)escrevem a história.
Muito das danças e rituais utilizam
símbolos católicos relidos; traduções de uma cultura imaterial que soube se
integrar para sobreviver.
Uma das ricas expressões indígenas é o
Toré, dança de caboclos, tradição dos antepassados que afirma a identidade indígena e
o direito à terra. No Tribal Brasil, traços dessa imaterialidade são memorados
através da construção de personagens que se utilizam de chocalhos, maracas,
passos desconstruídos dessa dança ritual, além do figurino composto por cocás,
pinturas que se hibridizam com a estética tuareg, plumas, palha, colares de
contas e sementes, madeira que se unem ao metal, às moedas; e uma musicalidade
que nos conecta com a natureza e com os cânticos Tabajaras, Potiguaras,
Pankararus ou Fulni-Ôs, por exemplo.
Toré
Em minhas (des)construções interpretei a
Cabocla Jurema, com base nas danças urbanas e afro-indígenas, utilizando música
do NSISTA, remix de ponto de Umbanda, Cabocla:
Outra (re)leitura aconteceu através de improviso no Show de Gala com Sharon
Kihara em João Pessoa:
Nesse último caso, personifiquei a flor da planta Jurema branca. Da casca,
raíz ou caule dessa planta sagrada se extrai a bebida ritual indígena utilizada
no Toré e no Ouricuri, longe dos olhos dos não-índios com fins de possibilitar
comunicação com o mundo espiritual, ou dos “encantados”.
O Ouricuri é um ritual de clausura
individual ou coletiva. O local desse retiro leva o mesmo nome do ritual.
Ouricuri também é o nome da palmeira que se extrai folhas para o rico
artesanato indígena. Esse ritual é realizado de setembro a novembro e jamais
revelado a não-índios.
Outras manifestações com identidade
indígena são o caboclinho e as tribos de índios carnavalescas. Os Caboclinhos
são especificamente de Pernambuco ao passo que as Tribos de Índios Carnavalescas são tipicamente paraibanas. A sonoridade é bem semelhante, mas diferem quanto à
estrutura cênica da manifestação popular, roteiro da brincadeira, personagens.
Caboclinho
Tribos de Índios Carnavalescas
São algumas características essenciais
do Caboclinho: a dança guerreira, o cunho religioso ligado à boa colheita ou
caça, assim como a recitação de versos heróico-nativista.
Na Paraíba encontramos as Tribos de
Índios Carnavalescas que possuem muita semelhança, mas têm suas
particularidades.
O registro oficial do Caboclinho data de
1584, no livro “Tratado e Terra da Gente do Brasil” do padre Fernão Cardim. Com
o passar do tempo, essa manifestação cultural, por ser de origem indígena e ter
suas letras passadas através da tradição oral, perdeu muito da originalidade e
foi se modificando naturalmente até os dias de hoje. Durante o extermínio
promovido pela coroa portuguesa, várias tribos foram extintas e com seu povo
morreu também parte do folclore Caboclinho. A resistência dessa manifestação
cultural é encenada até os dias de hoje no carnaval.
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Andrea Monteiro |
Segundo Marcos Ayala, doutor em
Sociologia da Cultura, em documentário postado no youtube, “As tribos de índios
do carnaval de João Pessoa existem pelo menos desde 1918 como mostra o
estandarte da mais antiga delas ainda atuante, a Tribo Indígena Africanos.
Apesar de algumas semelhanças, distinguem-se dos Caboclinhos de Pernambuco. De
singular, as tribos paraibanas têm a matança – encenação dramática em que os
espiões matam toda a tribo. Quase todas as tribos têm um feiticeiro, referência
a uma das religiões afro-brasileiras, a Jurema, que se distingue pelos
cachimbos e maracás. Outros elementos que dão singularidade às tribos de índios
são os capacetes – cocares enormes de mais de 3 metros de diâmetro que vão à
frente, abrindo o desfile de cada grupo, pesam mais de 40kg e são enfeitados
com muitas penas de pavão. A gaita, como é chamada a flauta de taboca ou metal,
e os outros instrumentos, caixas, bombos, ganzá, fazem o ritmo característico
da brincadeira. Não há canto. São muitas as evoluções e as encenações de luta e
força dramaticamente construídas. No final, ao ser declamada a loa, isto é, o
conjunto de versos que dá entidade ao grupo, todos se levantam dizendo em coro
o nome da tribo e saem alegremente dançando de cócaras a dança do sapo.”
Genuinamente brasileira, a música do
Caboclinho e das Tribos Indígenas Carnavalescas se assemelham com a
musicalidade oriental, lembrando as canções hindus, árabes e chinesas. Uma
característica marcante do ritmo é a forte marcação dos Trupés, pisadas firmes
no chão que tem como finalidade marcar o pulso para os instrumentos.
Os figurinos dos brincantes são
cuidadosamente trabalhados, luxuosos. Cocares e saias de penas de avestruz, ema
e pavão, trazem a semelhança com os figurinos do Tribal Fusion. Colares de
sementes no pescoço, pulseiras e tornozeleiras bastante coloridas também me despertaram
para essa possibilidade de introduzir o Caboclinho e as danças das Tribos de
Índios Carnavalescas ao Tribal Brasil.
A partir dessas observações, em 2010,
convidei José Reinaldo de Souza, pesquisador das Tribos Indígenas Carnavalescas
da Paraíba e Veronica Alves, brincante, para ministrarem oficina sobre o tema
na primeira Caravana Tribal Nordeste, realizada no Teatro Lima Penante em João
Pessoa.
Em 5:50 minutos no vídeo acima mostra um pouco das tribos indígenas
José Reinaldo levantou a discussão. “As
Tribos Indígenas não são Caboclinhos. Que são então?” E tomamos conhecimento
que alguns estudiosos da cultura popular vão utilizar o termo Caboclinho
Paraibano devido ao estudo A Missão de Mário de Andrade 1928-1929, pois o mesmo
nunca utilizou o termo “tribo de índio”.
A formação/disposição dos brincantes na
avenida muda de tribo para tribo. Segundo Seu Perrê da Tupi-Guarani, em
pesquisa realizada por Katarina Real-PE no período de 1961-1965, o
grupo de João Pessoa que se instalou em Recife era distribuído trazendo à
frente o Espião e os Guias. Em seguida vinham a Porta-bandeira, o Feiticeiro, o
Rei e a Rainha. Os cordões de índios, ou Porta-lanças, e das índias,
Machadinhas, seguiam em paralelo. Ao final a orquestra composta de duas gaitas,
dois ganzás e três zabumbas.
Quem lê a emocionante descrição de Mário
de Andrade sobre estes grupos poderá sentir e até visualizar a “formidável
coreografia bruta” dos dançarinos. Danças com passos complicadíssimos, danças
que atingem um “frenesi dionisíaco espantoso”. Descrevê-las é inteiramente
impossível. Danças como o Pisa-uvas, Passo cruzado, Tombo, Macumba, entre
outras.
Já segundo Seu Francisco, mestre da
Tribo Papo-Amarelo, em 1954, ainda segundo pesquisa realizada por Katarina Real,
o grupo era assim distribuído: à frente Espião e Baliza, em seguida o Tuxáu
(Mestre), o guarda-de-honra. Do outro lado o contra-mestre e mais um guarda-de-honra. Ao centro o porta-bandeira e o cordão com cerca de 20
brincantes. Ao final a orquestra com uma gaita, quatro bombos, um gonguê, um
triângulo e um caracaxá. As danças são conhecidas como Tombo de Lado, a Morte,
a Macumba, Dança do Sapo, entre outras.
Ou seja, cada tribo tem sua
particularidade, sua riqueza, sua linha. Sociologicamente, a vida das tribos é
parecida com a dos caboclinhos, talvez um pouco mais ligada às atividades
religiosas.
Na Caravana Tribal Nordeste estudamos a
adaptação do Tombo e da Dança do Sapo para o Tribal Brasil, incorporando
elementos dessas movimentações à dança Tribal, conferindo um novo código
repleto de tradição. Essa é uma constante no Tribal Brasil, trazer o novo, a
modernidade, mas a partir das bases da tradição, transformando em outra
linguagem.
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Carla Brasil, Kilma Farias e Renata Camargo. |
Trabalhar a identidade
indígena no Tribal é reafirmar nossa brasilidade, reinventando-a a cada dança.
Pensando nossa cultura como um processo constante de reinvenção, o índio que se
inseriu com a colonização europeia também se insere na pós-modernidade, sendo
ao mesmo tempo inserido nos processos de arte e produção cultural material
pelos artistas de todo o mundo. Pensar essa tradução cultural indígena é reconhecer
a importância de uma cultura imaterial, valorizando a pluralidade e a riqueza
dessas expressões.
Texto
extraído do vídeo realizado em fevereiro de 2007, durante apresentação das
tribos indígenas do carnaval tradição de João Pessoa. Acervo do Coletivo Meio
do Mundo. Link: http://www.youtube.com/watch?v=hlRqckZdkFY
Danças
dramáticas do Brasil, v.2, São Paulo, 1959, p.179-199.
Tribal Brasil - Identidade no Corpo
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João Pessoa, Paraíba